Este prazeroso reencontro com os leitores, ato de renovação na fé da escrita, me leva a falar desse sentimento que move, apesar de tudo, a maioria de nós: o amor. E, como não sou poeta, mas colunista, naquela especulação complicada que faz a pergunta desta crónica.
Como saber que gostamos? Qual a maior prova do amor? De onde vem a certeza, a convicção de que o nosso negocio é mesmo com a Maria e não com a Verónica, a Célia ou a Joana? De onde vem esse "gostar" brasileiro, preferido ao "amar" modernoso, difundido pelos filmes de Hollywood, e pela sociedade americana onde se "love" tudo?
Complicado descobrir essas fontes do amor definitivo e sereno na sua certeza mais absoluta de que tudo tem mesmo a ver com "ela" e não com nenhuma outra. Que amor é esse que se confirma, para os seus eleitos, numa enorme satisfação interna, pessoal, irremovível, integral, prazerosa e tão difícil de exprimir quanto um milagre?
Qual a maior prova - note bem - do amor e não de amor?
Provas de amor, diga-se logo, são convencionais: um discurso bem alinhavado na festa das bodas, seguido de um beijinho seco na boca da esposa feliz; um buquê de rosas (ou um Audi novinho em folha) no dia do aniversario; um colar de pérolas falsas, mas de boa qualidade e gosto; um livro da moda, repleto de fórmulas mágicas e histórias de gurus; uma viagem para um lugar bem frio, coberto de neve, essa preferência dos "novos-ricos" (chamados de "emergentes") nacionais; um passeio a "Noviorque", Paris ou Buenos Aires, essa cafonalha maravilhosa situada no fim deste triàngulo sulino que é o nosso contingente...
Provas do amor são diferentes. Elas tem a ver com aquela dolorosa visita ao médico para curar a doença que vai prolongar a relação; diz respeito a escovar (que chatice! Pra quê?) os dentes antes de ir para a cama; a usar o desodorante que ela gosta; ou deixar de beber a "última cervejinha" com os amigos; ou chegar em casa na hora do jantar com a família, abandonando o papo libertino, machista, fantasioso e excitante na roda do bar; comprar o remédio para a filhinha com tosse a meia-noite, quando o corpo estourado queria mesmo era ficar no sofá vendo um programa idiota de televisão, daqueles que de tão ruins, cegam a reflexão; ou deixar que o outro fale tudo, sem ter receio de ser corrigido ou interrompido; ou revelar o desejo quando ela, mesmo passada pelo tempo, aparece "casualmente" de calcinha na sala, procurando alguma coisa; ou não recusar uma visita dos sogros e cunhados, sabendo da conversa e da exclusão; ou rezar por ela quando as enfermeiras a levam para uma sala de cirurgia; ou dar um beijinho de língua furtivo, mas revelador de que algo está (e continua) "rolando"...
Posso listar, sem puxar muito pela memória, grandes provas do amor. O Henry escreveu um conto maravilhoso no qual o trivial presente de Natal, trocado entre os cónjuges, deixa de ser uma mera prova de amor para transformar-se na expressão, na concretização, na personificação mais bela e autêntica de prova do amor. E quando o marido vende seu relógio ancestral, relíquia e herança de família, para comprar uma tiara capaz de honrar os belos cabelos da mulher e ela, no mesmo espírito, vende os seus cabelos para comprar uma corrente de ouro para o refúgio vendido do amado. Essa troca de dons sem possibilidade de retorno, esse querer suicidar-se sem razão por causa de uma mulher que ainda não se conhece (como ocorre no Dom Quixote), esse ficar na chuva e no sol esperando que seja aberta a janela da amada (como no filme Cinema Paradiso), são exemplos do amor. Ao lado deles devo falar daqueles que escolhem o compartilhar da vida toda e, com isso, deixam que lhes aconteça a experiência do tédio, do envelhecimento mútuo, compensado - miraculosa e lindamente - pela soma e pela construção de uma "casa", eventualmente de uma tribo. Uma cidadela forjada na confiança e no milagre da renovação de um amor que deixa de requerer provas, porque a vida em comum é a sua permanente revelação.
EH quando o amor deixa de ser visto como algo que pode ser apanhado, sentido ou perdido para colorir e tingir a ralação. No caso do matrimónio, que sela um ideal de amor que se quer eterno mas, eis o brutal paradoxo, não pode deixar de levar a marca da chatice, da raiva e da rotina, ele muitas vezes se esconde de tal modo na relação que fica difícil desperta-lo.
E, no entanto, queridos leitores, eu sei que ele aparece e ressuscita poderoso e grande, como naqueles primeiros dias de obsessão apaixonada e sófrega. EH quando, na cálida intimidade da alcova, o amor faz o tempo parar e transforma marido e mulher em amantes. EH quando de dentro da relação sai um beijo diferente: apaixonado.
Então, os amantes experimentam o supremo manifestar da vida amorosa: aquele encontro simultaneamente marcado pela familiaridade que nasce da paciência e da lealdade, ao lado das experiências quase científicas da paixão. Nessa comunhão carnal renovada canibalisticamente, descobre-se a grande prova da doação incondicional: a que não precisa de retorno porque ela é a própria relação. EH nessa hora que a gente sabe que ama mesmo aquela pessoa. Apesar do tempo, apesar das fantasias, apesar das rotinas e dificuldades. E diante de todos esses sinais portentosos de afirmação e certeza, nos abraçamos por termos tantas vezes dito não a nós mesmos...
Roberto DaMatta, antropólogo escreve à s quintas no espaço Caderno2 do Jornal O Estado de São Paulo.
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