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Cronicas-->Margareth Joana D Arc -- 05/07/2004 - 15:33 (Alexandre da Costa) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Eu conheci a noite de São Paulo quando deixava de ser um moleque. Foi no começo dos anos 90. Mal completara 16 ou 17, sei lá. Eu era o estereótipo do arrimo de família, todo comportado e responsável. Trabalhar, acima de tudo. São Paulo antes das 18 horas era a minha cara. Uma coisa cinza, corrida, às vezes, superficial, efêmera. Margareth Joana D´Arc apareceu nessa fase "garoa" da minha vida. Uma espécie de Julia Roberts do centro da cidade. Cabelos encaracolados, ruivos, pernas gigantescas, um bocão sem censura que envergonhava os babacas que chegavam perto dela.

Para mim, Margareth era algo intocável, assustador até. Jamais notaria a minha presença. Como a noite de São Paulo, ela não sentiria a minha falta. Pensava eu. E quando o horário de verão chegou, atrasando ainda mais a chegada da vida, tudo mudou. Lembro até hoje do vestidinho de grávida que usava. E o cabelo! O cheiro! Não podia ser verdade. Minha vida ia virar de ponta cabeça e eu estava adorando. Apesar da aparente fortaleza, Margareth não passava de uma menina. Estava sozinha como eu. Quase tão cinza como eu. Do primeiro beijo, lembro do gosto de cigarro na boca dela. Sim, como toda rebelde, ela fumava. No segundo seguinte, porém, veio uma segurança que jamais sentira antes. Aquela sensação de ter se deixado cair no precipício. Como uma droga que entra na sua corrente sanguínea, Margareth mudava a minha existência.

Numa noite de sexta, saímos para abraçarmos a São Paulo mitológica. Aquela das putas, dos bêbados, dos solitários e, claro, dos apaixonados. Eu estava apaixonado. Nunca disse isso a ela. Do escritório em que trabalhávamos, na rua Aurora, saímos para a Treze de Maio. O lugar, o Café Piu Piu, foi escolhido por ela. Rock in Roll da melhor qualidade. Eu, um moleque metido a responsável, estava deliciosamente sendo levado pela correnteza. E por onde Margaretn passava, não havia Cristo que não olhasse. Disfarçava minha ansiedade como podia. E ela dançava, dançava, dançava e o mundo podia acabar ali com ela dançando. Mas aquela mulher não me perdia de vista. Cuidava de mim, discretamente, afinal ela tinha uma fama de má que gostava de manter.

Smell Like to Teen Spirit, do Nirvana, é tocada com intensidade. Era a trilha sonora perfeita. Houve um biz rápido que não me lembro qual foi. A pé, saímos do bar e andamos por ruas que, também, não lembro o nome. E as revelações surgiam a cada esquina. Os tipos estranhos não me eram tão estranhos assim. O maluco que não parava de coçar a cabeça e perguntar por quê? A menina/menino (eu estava meio bêbado) contando as migalhas da noite que acabava. O playboy com a cabeça rachada sentado na valeta amparado por outro playboy. Uma criança, duas crianças, três crianças dormindo abraçadas embaixo de uma caixa de papelão. O dono da padaria em mais um dia de labuta. E eu, segurando a mão de Margareth. Ela segurando a minha. Nunca, até aquele momento, a incerteza do futuro me pareceu tão enfadonha e incipiente. Eu vivia ao lado dela a certeza do instante que marca uma vida. No pano de fundo, São Paulo abria sua veias, cicatrizes, dividia sua dores e segredos. Eu fazia parte daquilo.

Andamos uns 25 minutos. Não queríamos que aquilo acabasse. No labirinto do centro, reconheço as luzes da estação Anhangabaú. Não estava mais perdido. Faltava ainda meia-hora para os trens começarem a circular. Margareth estava cansada. Eu, extasiado. Naquela época, na saída do metró que dava a rua da Consolação ficavam alguns bancos de praça que serviam de cama para os sem-teto. Naquela noite, sobrara um. Sentamos e ela procura o meu colo. Tão frágil, a máscara de mulher caía. Margareth dormia. Enquanto acarinhava seus cabelos, peguei no sono também. Lembro que dei um beijo de boa noite. Ela sorriu com o canto da boca. Ninguém nos incomodava. Fazíamos parte daquela paisagem também.

Levo um susto com o toque do cassetete na minha perna. Hora de acordar, dizia o segurança do metró. A noite ainda insistia mais um pouquinho. O primeiro trem, sentido zona leste, chega. Embarcamos como namorados de volta à realidade. Margareth, como a noite, insiste mais um pouquinho. "Mais dois minutos" e eu a deixo dormir até chegarmos na estação Tatuapé. Lá, cada um vai para o seu lado. Eu, como Margareth e a noite, insisto mais um pouquinho. Acompanho minha insanidade até o ponto de ónibus. O carro já vai partir, mas há tempo para um beijo daqueles que Hollywood estampa em seus finais. Engraçado, senti o coração dela batendo tão rápido... Margareth Joana D´Arc era seu nome mesmo. Ela detestava. Eu achava que combinava direitinho.

Dez anos depois, o cinza aumentou. A garoa molha cada vez mais. A noite já não te recebe mais com aquele sorriso cínico cheio de mistério. Nosso banco da estação já não existe mais. Ela se perdeu no mundo. Eu também não tomei um rumo diferente. Ás vezes, quase nunca, porém, me pego procurando uma saída com o nome Margareth no meio do labirinto de poluição, solidão e escárnio chamado São Paulo. Nunca mais encontrei essa saída. A esperança que me resta é que o sol sempre se põe em São Paulo.



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