Se meu pai estivesse vivo, teria completado em 15 de março de 2004 o seu centenário. Ele transferiu-se em 1978 para lugar ao lado de Deus, permanecendo, no vazio criado pela sua partida, as boas lembranças de uma época feliz, em que a sua companhia era a garantia de amor e segurança constantes.
Seus ensinamentos foram, certamente, fundamentais para a formação moral dos filhos.
Vem-me à memória fato ocorrido em verão da primeira metade da década de cinquenta, quando residíamos em Recreio (MG).
Meu pai havia decidido ir a Cataguases (MG) para a entrega a comerciante local de manilhas fabricadas pela Ceràmica Wilson, de sua propriedade.
Usufruindo férias no Grupo Escolar Olavo Bilac, recebi autorização para participar da viagem.
A estrada esburacada e sem asfalto não impediu que o nosso caminhão FORD 6 cilindros, de 1946, enfrentasse com galhardia os trinta e poucos quilómetros que separavam as duas cidades.
Acompanhava-nos, além do motorista, um empregado da Ceràmica, da cor do ébano, encarregado de carregar e descarregar a viatura. Apesar do dia quente, ele realizou com eficiência a tarefa que lhe foi atribuída.
Concluída a entrega da mercadoria transportada e acertadas as contas com o comprador, meu pai dirigiu-se a restaurante da localidade, pedindo-me fosse chamar os nossos acompanhantes para o almoço, pois eles deveriam estar com fome.
Encontrei o carregador (a quem chamarei de Tião, por não mais me lembrar de seu nome) sentado no meio-fio, com o dorso nu, recuperando as energias gastas com seu árduo trabalho.
O convite para comer conosco foi prontamente recusado. Ele, molhado de suor e com a roupa suja pelo contato com as manilhas, alegou não possuir as condições que lhe permitiriam ingressar no restaurante, um estabelecimento luxuoso sob o seu ponto de vista. Preferia alimentar-se com alguma coisa ali mesmo na rua.
Transmitindo o recado do carregador e sentando-me à mesa onde se daria a refeição, recebi ordem de meu pai para levantar-me e retornar rapidamente até onde se encontrava aquele seu auxiliar e pedir-lhe que viesse ao seu encontro.
E acrescentou junto ao meu ouvido, ao notar a minha indecisão: "Meu filho, o suor e o pó resultantes do trabalho só devem honrar quem os carrega. Chame logo o Tião. Ninguém é mais digno para entrar em um restaurante, por mais refinado que este seja, mesmo porque são com pessoas como ele que a nossa mesa é abastecida com o pão de cada dia".
Decorridos poucos minutos, estávamos os quatro, sob o calor de Cataguases, regalando-nos com a água gelada e os alimentos que o garçom colocara à nossa frente.
Desde aquele dia, passei a olhar com respeito e admiração os trabalhadores braçais, por mais humildes que aparentassem ser.