Para realmente se conhecer uma pessoa dê poder a ela.
Eis aí grande verdade; verdade que constatei pelos fatos que se sucederam com um "amigo", o pequeno Sorgen, uma figura que conheço desde que me entendo por gente. Éramos vizinhos na infància. Depois a família dele mudou-se, porém, anos depois nos reencontramos no mesmo setor de uma metalúrgica.
Pois, não é que o dito cujo, que sempre foi um das pessoas mais populares e servis que circulavam em nosso meio, ganhou um cargo de confiança. Daí, como num passe de mágica, um desses abracadabras da vida, o rapaz se tornou outra pessoa.
O olhar dele se tornou diferente; de brilhante, alegre e cheio de vida passou a ser perscrutativo e frio. O jeito de andar, este ficou engraçado: cabeça erguida ele sempre teve, mas a leve inclinação pendendo para direita era muito semelhante ao do Dr. Fontes; fato este muito curioso. Os trejeitos da mão passaram a ser muito controlados, como se tivesse feito um destes cursos de oratória: estes caracterizam o Marcel, o gerente de vendas.
Afastar-se dos amigos das duras rotinas, talvez tenha sido natural, uma vez que um novo mundo se descortinava; assim como as novas frentes de responsabilidade; assim como as novas (e mais lucrativas) amizades que pululavam ao redor.
Desde o dia em que foi de "mala e cuia" para a diretoria somente passou no almoxarifado umas três ou quatro vezes, sempre por imperiosa necessidade de serviço. E, lá no setor em que viveu cinco longos anos comigo, com o Durval e com o Jones não mais se sentia à vontade; não parava lá por mais de dois minutos contados no relógio: eis o Sr. Sorgen da diretoria. Em outros setores ele até passava com mais regularidade, como na estamparia, que apesar de todo aquele barulho infernal, à s vezes, ele conversava, ria e até contava piadas: este era o "velho" pequeno Sorgen dos bons tempos de almoxarifado, um pequeno Sorgen adormecido, dominado por um Sr. Sorgen em ascensão.
Devo dizer também que o pequeno Sorgen transfigurado em Sr. Sorgen conversava e ria quando não estava de mau humor. O problema é que quase sempre estava carrancudo e taciturno. Nestas ocasiões fazia-se o senhor do mundo e buscava se fazer entender somente com palavras pouco amenas; tantas e tantas vezes fora de rudeza desnecessária e ultrajante; muito desagradável mesmo.
Por dois anos, o promissor funcionário viveu esta rotina entre esnobe e falsa modéstia. Neste período, aquele que fora meu mais leal companheiro de futebol, copos e baladas, nunca trocou uma única palavra comigo que não fosse assuntos referentes ao trabalho e o fazia sempre de forma ríspida. A princípio, isto me incomodou, e muito. Mas, superei. Consolei-me, enfim, ao perceber que em verdade ele jamais fora um amigo, portanto nada perdera.
Há um outro dito que diz que não há nada como um dia atrás do outro e uma noite no meio.
Eis que nas voltas e reviravoltas do mundo o Sr. Sorgen desequilibrou. O astuto rapaz que havia caído nas graças de um dos diretores, por um não sei o que de escàndalo do alto escalão, despencou em desgraças, porque o seu protetor fora envolvido da unha do pé até o último fio de cabelo num estranho esquema que foi abafado, mas com muita dificuldade; sobraram umas arestas visíveis a olhos mais atentos, mas que não vem ao caso.
Para nós o que importa deste escàndalo é que o Sr. Sorgen transfigurou-se novamente em pequeno Sorgen. Hoje é estranho vê-lo entrar à s sete e se afundar no almoxarifado. Somente fala comigo o estritamente necessário e por eu ser o encarregado do setor. Ante o Durval e Jones faz tipo introspectivo.
Mais estranho ainda é que em outros setores, exceto na diretoria, conversa, ri e até conta piadas (Ã s vezes, quando está de bom humor). Eis aí o "velho" pequeno Sorgen dos bons tempos de almoxarifado: um pequeno Sorgen definitivamente morto; eis aí o "velho" Sr. Sorgen dos bons tempos em que era a própria ascensão: um Sr. Sorgen transfigurado em fantasma.