Quando compramos a casa, ele veio com ela. Teria, então, uns dezesseis anos e era um rapaz meigo, tímido, introspectivo, muito inseguro!
A pessoa que nos vendeu a casa insistiu muito para que ficássemos com o rapaz: ele fazia as vezes de jardineiro, limpava e cuidava da piscina, ligava a bomba do poço artesiano, cumpria mandados e era de confiança!
Ficou conosco e está até hoje, mais de dez anos decorridos desde então!
Chamava-se António. António José da Silva!
No princípio, acho que não reparamos muito no seu jeito, no seu modo de ser, mas com o tempo os seus maneirismos, alguns gestos afetados, a voz acariciante, aflautada terminaram por nos revelar os contornos de um homossexual.
Na verdade, muito menos um homossexual e muito mais um ente feminino, tais eram as semelhanças de comportamento e de reações com as mulheres!
Mas, António não parecia se dar conta de sua natureza feminina e ainda se esforçava para sufocar os impulsos de sua sensibilidade que o levavam a confundir-se com as mulheres.
Ademais, no Recife, Ã quela época, ser macho - ou parecer - era a única opção que restava aos homens, como forma de ser aceitos por parentes e amigos.
A sorte de António, Tonho para todo mundo, é que nós viemos para a Bahia, nossa terra, de onde estivemos afastados por oito anos.
Aqui, ele continuou cuidando da piscina, dos jardins, fazendo mandados e ainda tentando parecer um homem normal.
Foi quando Sónia teve com ele uma de suas famosas "conversas psicológicas" !
O objetivo desse papo foi mostrar-lhe que muitas pessoas nascem com o sexo trocado: homens que deviam ser mulheres e mulheres que deviam ser homens, e que isso não se constitui vergonha ou estigma para ninguém. O importante, para cada pessoa, era assumir sua verdadeira natureza, sua real identidade.
Apesar de primário, ingênuo, Tonho entendeu e absorveu perfeitamente os conceitos da patroa e, rapidamente, assumiu sua feição homossexual.
Isso aconteceu, exatamente, nos meados da década de setenta, quando "veados" e "bichas" passaram a ser "gays" e a sociedade, como um todo, passou a compreender melhor essas pessoas.
Então, as mudanças de Tonho foram prodigiosas! E rápidas!
Na tal "conversa psicológica" com Sónia, ele admitiu que realmente não se sentia - e nem agia - como um homem: era ainda virgem, não se via sexualmente atraído pelas mulheres, temia a violência sob qualquer forma e adorava imaginar-se com roupas de mulher.
Sem muitos rodeios, confessou que seu sonho mais recóndito era arranjar um "marido", um companheiro, e ter filhos, cuidar deles e da casa, como qualquer mulherzinha...
Assim, não foi surpresa para nós quando ele mudou de profissão: deixou de ser jardineiro, moço de recados e assumiu a cozinha. Simplesmente passou a ser nosso cozinheiro, com fascínio pela doçaria.
Também não foi surpresa saber que ele fora escolhido Diretor Social do "Cabuletê", um barulhento bar-boate de motoristas , "gays" e empregadas domésticas, pertinho de nossa casa, que fazia nosso inferno nas noites de sexta e sábado.
Surpresa, mesmo, foi quando o vimos na televisão (o nosso tímido Tonho! ), num sábado de carnaval, os cabelos pretos com mechas verdes e douradas, um corpete colante e uma colorida mini-saia, Ã porta do "Baile dos Gays" , dizendo com firmeza e orgulho: porque nós, os "gays" , temos que assumir...
Já não era o nosso António, nem o Tonho cozinheiro mas , como anunciava o repórter, era Tony, o presidente do Clube dos " Gays ".
A "conversa psicológica" de minha mulher dera resultado, mais uma vez... E como!
17.11.85