(RELÓGIO NÃO MARQUE AS HORAS, de Antonio Miranda. Esta é a 12ª. crónica da série*)
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OLD SAN JUAN
Judith lê as edições do Women s Review of Books, um tablóide feminista que faz resenhas de livros sobre a questão da mulher. Explica que não é feminista convicta mas está interessada na evolução dos direitos da mulher e em sua criação literária. É amiga de empresárias do ramo livreiro e editorial.
Anda sempre correndo, olhando a gente do fundo de seus olhos azuis profundos, protegidos pelos óculos fundo-de-garrafa. Sempre desajeitada, concentrada em seu labor de formiga. Como boa anglo-saxónica, de formação puritana, para quem o trabalho é uma forma de realização pessoal e de devoção divina, ela nunca conversa nos corredores da Escuela. A questão não está somente em trabalhar mas em mostrar que está trabalhando, enquanto os latinos fofocam pelos cantos.
Não sei de onde vem o puritanismo de Judith. Ela não é protestante, é judia. Deve ter aprendido no banco das escolas e no processo de socialização familiar, orientando-a para o trabalho como atividade constante mais do que como resultado. O homem trabalhando escapa ao vício e reverencia a Deus.
Sábado pela tarde saímos, de ónibus, para a área velha de San Juan de Puerto Rico.
Alegou que o estacionamento por lá é infernal mas logo descobri que ela não gosta mesmo é de dirigir. Tem horror ao trànsito.Antes, almoçamos no apartamento. Tortilhas mexicanas que ela mesma preparou, acompanhadas de arroz moreno com ervilhas e salada. Dezenas de livros de culinária cobertos de gordura, sujos pelos ingredientes da cozinha, jogados sobre a mesa da copa. O vento atravessava todas as habitações e deixava camadas de pó e fuligem dos automóveis sobre os móveis, quadros e janelas. Vidros quebrados, um amontoado de coisas velhas e abandonadas pelos cantos. A maresia e as chuvas constantes corroem as grades das varandas e os marcos das janelas e portas, e o sol inclemente racha e apaga as pinturas das paredes, substituindo-as por manchas e nódoas de umidade, bolor e monóxido de carbono. É aquele mesmo negrume dos muros e paredes de Manaus, depois de tantas chuvas e de tanto calor sufocante.
O apartamento é bem grande, com móveis mal conservados e gravuras interessantes pelas paredes.
Dois cães pequenos amenizam a sua solidão, depois que a família partiu.
Old San Juan conserva as suas muralhas e os sobrados com terraços, suas ruas inclinadas e calçadas empedradas, e os edifícios coloniais transformados em museus. Os espanhóis construíram igrejas, conventos e fortalezas. O que mais impressiona são as muralhas íngremes, sólidas, para a defesa da cidade contra os ataques dos piratas. As velhas fortalezas agora são santuários turísticos ou permanecem como faróis para orientar o movimento dos imensos navios dos cruzeiros milionários pelo Caribe.
Embora fosse a minha terceira visita à ilha de Porto Rico, não lembrava bem daquelas ladeiras e praças, apenas das igrejas e da fortaleza de El Morro, que voltei a rever em cartões-postais.
É difícil reter as imagens dos lugares visitados há muito tempo, depois de tantas viagens. Uma excursão à Europa, por diversos países, acaba transformando-se em fragmentos, em vagas lembranças, em peças de um complexo quebra-cabeças que a gente não é mais capaz de recompor. Fica apenas uma impressão perdida no tempo, em que trafega uma figura humana que deixou de ser a gente, para tomar-se numa pungernte referência. Pior se guardamos nossas fotos dos lugares visitados. Não existe nada mais patético do que álbuns de fotos de viagens: as da gente são dolorosas, as dos outros são ridículas. Ou então acontece como à minha tia Inês, com noventa anos, que passa horas contando os detalhes da viagem que fez à Europa e ao Oriente Médio há dezenas de anos atrás e só se lembra dos hotéis, das conexões e de uns poucos locais visitados e, o que é pior, volta sempre ao mesmo assunto, e conta tudo uma outra e outra vez. Agora não, agora as pessoas gravam vídeos, como antes tiravam fotos e revelavam diapositivas (que carunchavam e perdiam as cores). Como serão as imagens nos vídeos gravados hoje, quando revistos no futuro? Certamente, patéticos. Voltar a ver-se caminhando, anos depois, como um fantasma fossilizado, é um exercício de sado-masoquismo. Ainda bem que não me lembro bem das minhas visitas a San Juan, em 1971 e em 1984. Vejo tudo de novo, pela primeira vez.
Como Cora Coralina, a Aninha da Meia-Ponte, em versos tão profundos, os tempos atuais são infinitamente melhores. Ontem não existe. Amanhã, menos ainda. Hoje, sim. Subindo ladeiras, com Judith à minha frente, como se fosse uma freira de alpargatas, forçando-me a andar mais depressa. Ela não tem paciência com a vida, parece ter vergonha de viver, de desfrutar a sua existência.
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Próxima crónica da série: (13) RELOJ, NO MARQUE LAS HORAS
Para ler toda a sequência inicie pela crónica (1) VÓO NOTURNO, na seção de Cronicas de Antonio Miranda, na Usina de Letras.
Iremos publicando as Cronicas que vão constituir uma espécie de romance,
paulatinamente.Semana a semana... o livro impresso já está esgotado...
Sobre a obra e o autor escreveu José Santiago Naud: "A agudeza do observador, riqueza do informe, sopro lírico e sentido apurado do humor armam-no com a matéria e o jeito essenciais do ofício. É capaz de apreender com ternura ou sarcasmo o giro dos acontecimentos e deslizes do humano. Tem estilo, bom senso e bom gosto, poder de síntese e análise assim transmitindo o que vê e o que sente, nos transportes do fato ao relato, para preencher com arte o vazio que um vulgar observador encontraria entre palavras e coisas".
Crónica do livro: Miranda, Antonio. Relógio, não marque as horas: crónica de uma estada em Porto Rico. Brasília: Asefe, 1996. 115 p.