(RELÓGIO NÃO MARQUE AS HORAS, de Antonio Miranda. Esta é a 13ª. crónica da série*)
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RELOJ, NO MARQUE LAS HORAS
Fui tantas pessoas, em diferentes tempos. Se fui, não sou mais.
De um jardim próximo vem o perfume alucinante de uma dama-da-noite, de jasmins estonteantes, reportando-me a cheiros e situações em algum ponto perdido no passado, envolvido com pessoas que já desapareceram de minha vida. E dizer que representaram tanto para mim, pareciam insuperáveis, inseparáveis! Era outro que viveu e sentiu aqueles perfumes. Ainda bem, melhor assim.
Reloj, no marques las horas. Não sejas cruel. Olhando para trás, o tempo fraciona-se em períodos estanques. É inútil buscar uma relação entre eles, uma sequência. É até possível que não tenhamos relação alguma, não mais, com aqueles momentos.
Tenho esta sensação sentado na cadeira, em Ocean Park. O vento é forte e a areia fustiga meu corpo quase desnudo, cada vez com mais força, como agulhas invisíveis sobre a pele. A praia é verdeazul e, lá longe, jovens exercitam-se em jet skys ou travam uma batalha, com seus windsurfs, para manter-se em equilíbrio. Não há farofeiros, nem arrastões. A Praia é tranquila, com casas elegantes e, na linha do horizonte, os arranha-céus de Santurce.
A sensação é de já ter vivido esta situação no passado. Mas é outro o que contempla o mar, como uma pilha reabastecendo-se de energia.
Senhores de tênis caminham com seus cães de raça e mulheres gordas abundam na água de ondas curtas.
Vivi boa parte de minha vida à beira do mar mas nunca fui um ser aquático, marinho. A praia sempre foi a exceção para mim. Estava mais interessado no sol do que no sal. Caminhava, mais do que nadava.
Diante do mar, reapareço em momentos diferentes de minha vida: em Copacabana, na praia de Araçagi, na seara cartaginesa de Monastir, na areia poluída dos arredores de Hong-Kong, em Callao vendo o insondável mar infinito e azul turquesa do Pacífico ou, mais recentemente, contemplando a placidez azul cristalina de Varadero, com suas águas tépidas.
Judith é anfíbia. Tem nadadeiras nos pés, por isso é que não usa sapatos fechados. Uma sereia sem escamas, com saudades do mar. Mas ela só vem ao mar em dias pré-determinados e sempre na mesma praia. Parece que ela só se sente feliz se transforma prazer em rotina. Até o horário é sempre o mesmo. Ocean Park, debruçado sobre o mar Caribe, de frente para a linha do horizonte, que divide o hoje de ontem, o agora do jamais. Esta proximidade com Judith começa a incomodar-me e a acomodar-me.
Próxima crónica da série: (14) MISUNDEERSTANDING
Para ler toda a sequência inicie pela crónica (1) VÓO NOTURNO, na seção de Cronicas de Antonio Miranda, na Usina de Letras.
Iremos publicando as Cronicas que vão constituir uma espécie de romance,
paulatinamente.Semana a semana... o livro impresso já está esgotado...
Sobre a obra e o autor escreveu José Santiago Naud: "A agudeza do observador, riqueza do informe, sopro lírico e sentido apurado do humor armam-no com a matéria e o jeito essenciais do ofício. É capaz de apreender com ternura ou sarcasmo o giro dos acontecimentos e deslizes do humano. Tem estilo, bom senso e bom gosto, poder de síntese e análise assim transmitindo o que vê e o que sente, nos transportes do fato ao relato, para preencher com arte o vazio que um vulgar observador encontraria entre palavras e coisas".
Crónica do livro: Miranda, Antonio. Relógio, não marque as horas: crónica de uma estada em Porto Rico. Brasília: Asefe, 1996. 115 p.