(RELÓGIO NÃO MARQUE AS HORAS, de Antonio Miranda. Esta é a 37ª. crónica da série*. São Cronicas independentes não obstante formem um sequência, na intenção de uma crónica de viagem contínua...)
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PÃO COM FORMIGAS
Ao levar o pão à boca, durante o café da manhã, senti que as formigas caminhavam pela minha mão. Eram muitas e eu tentava livrar-me delas roçando na calça, mas elas iam subindo aos poucos entre os cabelos do pulso, entrando por debaixo da manga da camisa. Instintivamente, rocei o pano contra a pele, mas o efeito em nada ajudou a evitar um comichão debaixo do braço, em direção à s costas. Não sei se passei ou não a mão pela boca, mas a sensação era de cócegas e desconforto. Com a palma da mão tratei de esfregar o rosto, tentando limpá-lo enquanto sentia um fervilhar no outra mão, que segurava o pão. Corri para o banheiro e abri a torneira e comecei a lavar os braços e o rosto com uma certa agonia. Cuspi formigas com as migalhas de pão que tentara mastigar. Eram tantas! Eu não as via, mas sentia o trilhar de centenas delas pelo meu corpo. O recurso foi despir-me e abrir o chuveiro, com sofreguidão. Já sentia um movimento frenético nas pernas e um desassossego nas virilhas, como se fosse uma dormência súbita e intensa. Rocei com a esponja cada centímetro de meu corpo na busca das minúsculas formigas. Não picavam, apenas se moviam, mas em vão buscava-as a olho nu. Pareciam transparentes, eram quase da cor da pele, apenas podiam ser vistas com muito esforço.
Dentro do pão, alojaram-se em cada oco e em todos os vazios, por todo o tecido, em aglomerados e em fileiras contínuas. Entraram à s centenas por todos os espaços e trilhas internas. Tive que buscar os óculos para reconhecê-las. Amareladas, beges, quase da cor da matéria de que estava feito o pão. Ia partindo e encontrando mais e mais formigas no miolo da enorme baguette que compráramos dias atrás. Sobre a ceràmica da cozinha havia uma trilha de formigas em direção à porta da área de serviço, por onde se estendiam milhares e milhares de outras formigas em um movimento contínuo. Tentei matá-las com água fervente e queimei os pedaços de pão com muitas outras formigas alojadas em suas entranhas.
Lavei paredes e o piso da cozinha e da varanda com detergente mas sem a certeza de tê-las exterminado por completo. Ainda sinto uma certa gastura na boca, uma sensação de nojo e a pele guarda a memória de rastros indeléveis.
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Próxima crónica da série: (38) ORLANDO
Para ler toda a sequência inicie pela crónica (1) VÓO NOTURNO, na seção de Cronicas de Antonio Miranda, na Usina de Letras.
Iremos publicando as Cronicas que vão constituir uma espécie de romance,
paulatinamente. Semana a semana... o livro impresso já está esgotado...
Sobre a obra e o autor escreveu José Santiago Naud: "A agudeza do observador, riqueza do informe, sopro lírico e sentido apurado do humor armam-no com a matéria e o jeito essenciais do ofício. É capaz de apreender com ternura ou sarcasmo o giro dos acontecimentos e deslizes do humano. Tem estilo, bom senso e bom gosto, poder de síntese e análise assim transmitindo o que vê e o que sente, nos transportes do fato ao relato, para preencher com arte o vazio que um vulgar observador encontraria entre palavras e coisas".
Crónica do livro: Miranda, Antonio. Relógio, não marque as horas: crónica de uma estada em Porto Rico. Brasília: Asefe, 1996. 115 p.