Na malemolência da sexta, ao fim da tarde, inesperadamente um moço dirigiu-se a um canto da rua e, à moda antiga, fez rodar um pião. Ouvia-se um reggae vindo de algum lugar, anunciando que o lazer do fim da semana já era fato. O pião rodopiou um pouco bamboleante no início, endireitou-se em seguida, como um cavalheiro recompõe-se, empertigado, ao fazer a corte a uma dama; manteve-se firme, em volta de seu eixo, quase parado ou vagando adormecido, como um sonàmbulo, certamente zunindo, se um menino, de perto, o ouvisse. O moço o fez subir à palma da mão, apesar das cócegas que a velocidade do rodar lhe provocava ; atravessou a rua de pouco movimento, equilibrando-o com zelo ; já no outro lado, entregou-o ao deleite de alguém, como um presente singelo, oferecido de mão e coração abertos.
Lembrei-me dos quintais da infància, quando acompanhava o pião rodar até perder a força e desvanecer-se na última volta do seu giro. Enrolar firme a fieira e de pronto lançá-lo ao chão: uma técnica rudimentar que me fez voltar no tempo, mostrando-me à mão, num relance, cenas passadas, desenroladas no rodar de um moderno pião do asfalto.
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Brasília - Plano Piloto, 22 de novembro de 2002
Sandra Daher