(RELÓGIO NÃO MARQUE AS HORAS, de Antonio Miranda. Esta é a 56ª. crónica da série*. São Cronicas independentes não obstante formem uma sequência, na intenção de uma crónica de viagem contínua...)
56
RETRATO SEM BEIRADAS
Esse que aparece na foto colorida em frente ao Castil1o de San Cristobal [em Porto Rico] não sou eu, mas o que a vida fez de mim. Reloj, no marques Ias horas.
Ou vidas, pois as tive em quantidades. E as vivi com a intensidade que os poucos meios ao meu alcance me permitiram.
Algumas rugas e uma papada flácida denotam o cansaço de guerra, noites de espera, stress, mas os olhos revelam uma satisfação condescendente. Sim, valeu a pena ter vivido e mais ainda vale a pena continuar vivendo, mesmo que a carne se esgarce e as articulações revelem enrijecimento. Ou que a fogosidade dos vinte anos dê lugar a uma vida mais contemplativa.
No canto do lábio há um certo cinismo, um resquício de desdém. Denota alguma frustração indelével, marcada e recalcada na comissura, revelando desejos insatisfeitos.
A cabeleira continua espessa, prateada. A testa um tanto lisa e taciturna, escondendo uma personalidade instável nas entranhas mas equilibrada na superfície. Fantasias e realidades fervilham pelo sangue, em dimensões que se completam.
Sou trezentos, trezentos e cinquenta. Meu amigo Tadeu lembra-me os célebres versos de Mário de Andrade. Não sei se fui, se continuo sendo. Alguma coisa ficou, como a borra do café no fundo do coador.
E existe também a memória da pele. E as imagens apagadas no fundo da memória.
E os fantasmas que voltam sempre cobrando sua existência abandonada. Mas só me arrependo do que não fiz, ou não fui capaz de fazer. Absolvo até as minhas canalhices.
Próxima crónica da série: (57) DOIS PERSONAGENS EM BUSCA DE UM AUTOR
Para ler toda a sequência inicie pela crónica (1) VÓO NOTURNO, na seção de Cronicas de Antonio Miranda, na Usina de Letras.
Iremos publicando as Cronicas que vão constituir uma espécie de romance,
paulatinamente. Semana a semana... o livro impresso já está esgotado...
Sobre a obra e o autor escreveu José Santiago Naud: "A agudeza do observador, riqueza do informe, sopro lírico e sentido apurado do humor armam-no com a matéria e o jeito essenciais do ofício. É capaz de apreender com ternura ou sarcasmo o giro dos acontecimentos e deslizes do humano. Tem estilo, bom senso e bom gosto, poder de síntese e análise assim transmitindo o que vê e o que sente, nos transportes do fato ao relato, para preencher com arte o vazio que um vulgar observador encontraria entre palavras e coisas".
Crónica do livro: Miranda, Antonio. Relógio, não marque as horas: crónica de uma estada em Porto Rico. Brasília: Asefe, 1996. 115 p.