Foi quando eu a ví nua no parapeito que tive a pronta idéia de abrir a janela e estender a toalha molhada pelos lanches da manhã de Novembro. Eu fizera uma daquelas viagens que a gente só faz de vez em quando, uma vez aqui outra na China ao acordar naquela confusa cidade italiana, eu deparara com a cena da bela ragazza pendurada no parapeito e eu pensei que ela fosse ao suicídio, que nada, tudo era um blefe enorme naquela ópera bufa e eu a olhara com olhos de maravilhado enquanto ouvia O Sole Mio tocada ao fundo, com lençóis estendidos e toalhas sujas de molho de tomate e as cores berrantes da manhã correndo em estreitas ruas de Brescia, eu e minha pomba de lindos olhos pendurada no parapeito. Lá embaixo uma verdadeira parafernália de muitos gritos, senhoras vestidas de preto que retornavam de suas missas a persignar-se, enquanto mãos acenavam ao céu e nossa pequena Virgem de olhos enxutos olhava sorridente a calçada que poderia sorver sua essência, O Sole Mio, grata surpresa pela manhã de meu primeiro dia, um grande amor assim começa e outro se acaba na calçada, eu pensava, enquanto enxugava o canto da boca após saborear um belíssimo café da manhã e ler as páginas de um jornal com palavras que ainda insistiam em me enganar em seu significado, quando virara meus olhos e deparara com a cena da beleza estampada a um canto, balançando as pernas; murmúrios no corredor do hotel iam me inteirando dos fatos:
--É Verena de novo.
--É vero. Mas o que quer agora esta menina?
--Da outra vez queria seu primo de volta, pobrezinha.
--Todas queriam seu primo de volta.
--Mas, e agora?
--Ma Che!
--Quem o sabe? Essas mulheres...
--É bom saber disso, porque dessa vez ela está esquisita mesmo.
--Vai ver pensa que é um pássaro.
--Desce daí, Verena!
Verena, o anjo pendurado, devia ter seus dezenove, idade que deveríamos guardar para sempre,na memória de todos é a idade que traz as retumbàncias, as maravilhas dos fogos do desejo, as decisões eternas, as grandes paixões e os medos fogosos... Em poucos dias, dois para ser preciso, eu estava a sós comigo, numa viagem a Brescia, lera um jornal e vira as pernas de Verena, uma bela moça de cabelos ruivos, penduradas num inverossímil parapeito de um prédio vizinho ao hotel ruidoso onde me hospedara e onde tomara um de meus melhores cafés da manhã. Ah que viagem, eu pensava, paixões como essa não se acabam assim numa calçada, estateladas, ela me dizia com seus olhos amendoados que era para mim que ela se expunha, era ao estrangeiro que ela preferia se mostrar, não ao seu primo cafajeste nem à metade da cidade que a via com olhos contritos e bocas cerradas em profundo silêncio ou em gritos de desespero que se ouviam a léguas...
--Verena! Desce daí ou te parto ao meio!
Um ooooh se levanta, ela se ergue confusa, quase escorrega e cai, mas se apóia a tempo de ser capturada por mãos atentas ao mínimo de seus movimentos, talvez seu primo cafajeste, talvez seu enraivecido pai, talvez a providencial mão do policial mais próximo, a cena que vejo é a de um sumiço, raptaram meu anjo matinal, mas antes Verena me lançou um olhar fulminante, aquele que me faz voltar aos dezenove, aquele que me relembra de minhas paixões já mornas, um olhar que desmascara toda minha doce ilusão, a de que minha viagem só principia e mais nada, nunca tem fim, Verena e sua juventude exalando perfume, abro a janela e prefiro a calçada.