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Cronicas-->ELE, O PAPAI -- 31/01/2007 - 00:31 (Francisco Miguel de Moura) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
ELE, O PAPAI


Francisco Miguel de Moura*


O título não condiz com a distància que mestre Miguel mantinha da família, quer físicamente, quer na mostra de afeto. Que Mestre Miguel queria bem a todos, no seu esquisito modo, o filho tem certeza. Porém, elogios nenhum. Era "benção pra cá", "Deus te abeçoe pra lá", e pronto. Saía, deixando seu olhar azul perdido no horizonte. Pouco se demorava em casa, mesmo que estivesse sem trabalho.
- Zefa, cadê Miguel?
- Saiu por aí, pelas casas - respondia a mãe.
Fossem próximos ou distantes os locais de suas saídas, ela não sabia: apenas imaginava. O que iria fazer? Jogar baralho era o divertimento mais comum, naquelas bandas, e conversar com os amigos. No Curral Novo, só frequentava alguns cunhados e cunhadas (do lado de Zefa), dois ou três amigos e um ou outro primo. Podia ir até o Diogo. Mais distante, demorava um dia ou mais na caminhada e na conversa com os pais, os irmãos e os cunhados do seu lado. Mas, em casa, ninguém sabia informar seu paradeiro.
Depois que foi embora de Jenipapeiro com a família, aí então os filhos eram todos batizados e crismados por padrinhos que ele próprio escolhia, e amigos ajuntou os compadres e comadres. Visitá-los frequentemente se tonou obrigação prazeirosa. Ou porque era constante trabalhar longe, ou por temperamento, a verdade que o pai nunca foi íntimo do filho, dos filhos. Chico quer lembrar de uma alegria marcante de suas relações com ele, do tempo de criança e não consegue facilmente. Primeiro, nunca o levava para onde fosse a passeio; depois, para o trabalho, sim, porém quando já estava mais taludo e podia ajudá-lo. As boas recordações ficam para o pouco tempo de escola, junto aos colegas e às colegas, e também quando ouvia alguma rara frase sobre a inteligência do filho (se falava em particular com outras pessoas). Lembra, de outra forma: - que defendia sua feiúra, pois, segundo os observadores, Chico "puxara ao pai e não à mãe". O pai logo repostava com aquele ditado, quase provérbial:
- "Beleza em homem é como habilidade em égua, não serve pra nada."
Entre todos os episódios que merecem destaque nas relações com o pai, Chico destaca, em primeiro lugar, o mais emocionante, o da travessia. Demandavam um lugar do outro lado da ribeira e assim deveriam atravessar o rio. Havia chovido, mas o pai não adivinhara que a chuva tinha sido também nas cabeceiras e o Riachão recebera muita água. Era pela manhãzinha. Acompanhando o pai, Chico entra sem pensar na fundura, e logo a água lhe vai quase pelos ombros. A princípio não falou nada, com esperança de poder atravessá-lo sozinho, a corrente ainda na cintura do velho. Seu mundo a rodar, e a distància entre ele e o pai aumentando. Resistiria até quando? O grito de desespero veio logo.
- Pai, o rio está me carregando, vou me afogar!
- Deixe de moleza, moleque! - fala o velho, sem olhar
Mas, virando para trás, viu o perigo que corria o filho, e veio nadando, rápido, em seu socorro. E puxou-o pelo braço, até a outra margem, que não estava tão perto.
Foi a primeira vez que Chico sentiu medo da morte. As águas já quase a encobri-lo, o mundo rodando... A seus olhos o rio ia levá-lo mesmo, para o fundo. Sentindo a mão firme do genitor, o medo foi embora. O menino adorou o pai naquele instante.
Aqui poderia acabar o capítulo das maiores lembranças. Entretanto, sem querer, lhe vem à mente um dos episódios mais desagradáveis, mais negativos de sua vida, que lhe deixaria profunda marca. Para o olhar da criança, os pais são sempre fortes, sábios, impecáveis. É que ela necessita de firmeza e segurança. A debilidade, mesmo para praticar o bem, não é um fator positivo na formação do caráter. Os pais, quando dizem «sim» querem dizer «permissão», mas quando dizem "não", estão determinados: querem dizer «não» mesmo, e não há quem os demova do propósito. Assim deve ser. Nem que às vezes se trate de uma exigência sem importància.
Esse episódio ocorrido na família, ainda bem que com desfecho feliz, passa a relatar como centro do capítulo. A famíla de Mestre Miguel, naquela ocasião, estava morando num lugar entre Barra do Guaribas e Ema, na beira do rio. Havia a casa de seu Quinco Marinheiro e a de um senhor Moura Fé, ambas do outro lado do rio. Eram os ricos do lugar. A família de mestre Miguel morava numa construção tosca e solitária, isto é, sem vizinhos. Período de muita penúria de alimento, roupa e mobília. Não havia colheres, foram se quebrando pratos e panelas, os canecos e marmitas ficaram amassados de fazer dó. Comia-se em cuia, com as mãos. Só tinha uma única colher-de-pau para preparar o pirão de farinha com um naco de carne seca. Foi aí que o menino tentou fabricar alguns desses instumentos em madeira. Bem que remediara a falta. Que sua indústria não era uma perfeição, sabia. Mas os arrancava daquele horrível mau jeito de comer com as mãos.
Durante as viagens do velho, a mãe, com medo, ia dormir na casa de seu Quinco Marinheiro ou na do senhor Moura Fé. Este velho tinha muita simpatia pelo menino, agradava-o com presentes e carinhos, passava-lhe a mão nos cabelos... Mas um dia, sem o menino esperar, ele chegou à casa de mestre Miguel, muito sorridente. Este já o aguardava. Certamente haviam falado sobre o assunto. Após uma longa conversa entre os dois, que o menino não só ouvia como desconfiava - nos seus seis anos - propós levar o "rapazinho" para sua casa e criá-lo como filho, visto que estava tão magrinho. Se muito não se engana, prometia botá-lo na escola, e se quisesse até ser até para ser padre.
Foi um choque.
Chico não queria nada do que ele falou, nem deixar sua mãezinha e suas irmãs, menos ainda ser padre. Pela cara que fez, o sr. Moura Fé notou. Saiu da sala e foi choramingar lá dentro, pesando chumbo, uma tonelada. Queria enterrar-se, desaparecer dali imediatamente, não fosse ter que deixar a mãe. Não sabia o que fazer. Confiava nela.
D. Zefinha reagiu vigorosamente contra a empreitada de Mestre Miguel. Não admitia. O pai concordara com o pedido de Moura Fé, mas o menino não ia. Salvo, se a criança quisesse. Ela também confiava muito no filho.
- Então, como é, Mestre Miguel? - perguntou o homem.
Arrependido do que prometera antes, Mestre Miguel arranjou a desculpa que faltava:
- Só se o menino quiser.
- Não, eu não vou! - disse o garoto, e saiu correndo, chorando, em busca de D. Zefinha.
O velho Moura Fé, ouvindo aquela negativa, fica de cara transtornada e trata de arranjar uma meia desculpa:
- "Queria só experimentar por algum tempo, e se o menino gostasse..."
Seu projeto tão bem intencionado fora por água abaixo.
Que o garoto soubesse, ele não possuia filho macho, nem possivelmente fêmea. Ou se os tinha, viviam longe, eram grandes e independentes. Sua casa era triste, apesar dos sorrisos e da bondade dos seus donos. A partir daquela data, entretanto, o menino passou a vê-lo com outros olhos: de temor e não amizade. Queria tirá-lo dos braços de sua mãe, para onde? para quê?
Naquele tempo, Chico não tinha meios de interpretar o pensamento do pai. O que lhe ia pela cabeça e por dentro do peito para entregar a outrem o único filho homem, nem que fosse por pouco tempo? Que estava acontecendo? Porque, no fundo, no fundo, o menino nunca pensou, uma só vez, que fosse por falta de amor. Cadê a fé em Deus e nos homens, para ajudá-lo a ganhar o sustento da mulher e das crianças, três naquele momento?
Após o episódio envolvendo o filho e o marido, D. Zefinha não confiou mais em ir dormir na casa do senhor Moura Fé. Passou a procurar a casa de seu Quinco Marinheiro. Ali se considerava mais segura, além de garantir a ceia para todos.
O velho pai de Chico sempre fora um forte. Mas, a falta de emprego e a fome que rondavam a família obrigou-o a apelar para o velho Moura Fé, naquele momento.
Todos têm o seu dia de fraqueza.


_________________________
*Francisco Miguel de Moura, escritor brasileiro, mora em Teresina, Piauí. E-mail: franciscomigueldemoura@superig.com.br
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