O título não condiz com a distància que mestre Miguel mantinha da família, quer físicamente, quer na mostra de afeto. Que Mestre Miguel queria bem a todos, no seu esquisito modo, o filho tem certeza. Porém, elogios nenhum. Era "benção pra cá", "Deus te abeçoe pra lá", e pronto. Saía, deixando seu olhar azul perdido no horizonte. Pouco se demorava em casa, mesmo que estivesse sem trabalho.
- Zefa, cadê Miguel?
- Saiu por aí, pelas casas - respondia a mãe.
Fossem próximos ou distantes os locais de suas saídas, ela não sabia: apenas imaginava. O que iria fazer? Jogar baralho era o divertimento mais comum, naquelas bandas, e conversar com os amigos. No Curral Novo, só frequentava alguns cunhados e cunhadas (do lado de Zefa), dois ou três amigos e um ou outro primo. Podia ir até o Diogo. Mais distante, demorava um dia ou mais na caminhada e na conversa com os pais, os irmãos e os cunhados do seu lado. Mas, em casa, ninguém sabia informar seu paradeiro.
Depois que foi embora de Jenipapeiro com a família, aí então os filhos eram todos batizados e crismados por padrinhos que ele próprio escolhia, e amigos ajuntou os compadres e comadres. Visitá-los frequentemente se tonou obrigação prazeirosa. Ou porque era constante trabalhar longe, ou por temperamento, a verdade que o pai nunca foi íntimo do filho, dos filhos. Chico quer lembrar de uma alegria marcante de suas relações com ele, do tempo de criança e não consegue facilmente. Primeiro, nunca o levava para onde fosse a passeio; depois, para o trabalho, sim, porém quando já estava mais taludo e podia ajudá-lo. As boas recordações ficam para o pouco tempo de escola, junto aos colegas e à s colegas, e também quando ouvia alguma rara frase sobre a inteligência do filho (se falava em particular com outras pessoas). Lembra, de outra forma: - que defendia sua feiúra, pois, segundo os observadores, Chico "puxara ao pai e não à mãe". O pai logo repostava com aquele ditado, quase provérbial:
- "Beleza em homem é como habilidade em égua, não serve pra nada."
Entre todos os episódios que merecem destaque nas relações com o pai, Chico destaca, em primeiro lugar, o mais emocionante, o da travessia. Demandavam um lugar do outro lado da ribeira e assim deveriam atravessar o rio. Havia chovido, mas o pai não adivinhara que a chuva tinha sido também nas cabeceiras e o Riachão recebera muita água. Era pela manhãzinha. Acompanhando o pai, Chico entra sem pensar na fundura, e logo a água lhe vai quase pelos ombros. A princípio não falou nada, com esperança de poder atravessá-lo sozinho, a corrente ainda na cintura do velho. Seu mundo a rodar, e a distància entre ele e o pai aumentando. Resistiria até quando? O grito de desespero veio logo.
- Pai, o rio está me carregando, vou me afogar!
- Deixe de moleza, moleque! - fala o velho, sem olhar
Mas, virando para trás, viu o perigo que corria o filho, e veio nadando, rápido, em seu socorro. E puxou-o pelo braço, até a outra margem, que não estava tão perto.
Foi a primeira vez que Chico sentiu medo da morte. As águas já quase a encobri-lo, o mundo rodando... A seus olhos o rio ia levá-lo mesmo, para o fundo. Sentindo a mão firme do genitor, o medo foi embora. O menino adorou o pai naquele instante.
Aqui poderia acabar o capítulo das maiores lembranças. Entretanto, sem querer, lhe vem à mente um dos episódios mais desagradáveis, mais negativos de sua vida, que lhe deixaria profunda marca. Para o olhar da criança, os pais são sempre fortes, sábios, impecáveis. É que ela necessita de firmeza e segurança. A debilidade, mesmo para praticar o bem, não é um fator positivo na formação do caráter. Os pais, quando dizem «sim» querem dizer «permissão», mas quando dizem "não", estão determinados: querem dizer «não» mesmo, e não há quem os demova do propósito. Assim deve ser. Nem que à s vezes se trate de uma exigência sem importància.
Esse episódio ocorrido na família, ainda bem que com desfecho feliz, passa a relatar como centro do capítulo. A famíla de Mestre Miguel, naquela ocasião, estava morando num lugar entre Barra do Guaribas e Ema, na beira do rio. Havia a casa de seu Quinco Marinheiro e a de um senhor Moura Fé, ambas do outro lado do rio. Eram os ricos do lugar. A família de mestre Miguel morava numa construção tosca e solitária, isto é, sem vizinhos. Período de muita penúria de alimento, roupa e mobília. Não havia colheres, foram se quebrando pratos e panelas, os canecos e marmitas ficaram amassados de fazer dó. Comia-se em cuia, com as mãos. Só tinha uma única colher-de-pau para preparar o pirão de farinha com um naco de carne seca. Foi aí que o menino tentou fabricar alguns desses instumentos em madeira. Bem que remediara a falta. Que sua indústria não era uma perfeição, sabia. Mas os arrancava daquele horrível mau jeito de comer com as mãos.
Durante as viagens do velho, a mãe, com medo, ia dormir na casa de seu Quinco Marinheiro ou na do senhor Moura Fé. Este velho tinha muita simpatia pelo menino, agradava-o com presentes e carinhos, passava-lhe a mão nos cabelos... Mas um dia, sem o menino esperar, ele chegou à casa de mestre Miguel, muito sorridente. Este já o aguardava. Certamente haviam falado sobre o assunto. Após uma longa conversa entre os dois, que o menino não só ouvia como desconfiava - nos seus seis anos - propós levar o "rapazinho" para sua casa e criá-lo como filho, visto que estava tão magrinho. Se muito não se engana, prometia botá-lo na escola, e se quisesse até ser até para ser padre.
Foi um choque.
Chico não queria nada do que ele falou, nem deixar sua mãezinha e suas irmãs, menos ainda ser padre. Pela cara que fez, o sr. Moura Fé notou. Saiu da sala e foi choramingar lá dentro, pesando chumbo, uma tonelada. Queria enterrar-se, desaparecer dali imediatamente, não fosse ter que deixar a mãe. Não sabia o que fazer. Confiava nela.
D. Zefinha reagiu vigorosamente contra a empreitada de Mestre Miguel. Não admitia. O pai concordara com o pedido de Moura Fé, mas o menino não ia. Salvo, se a criança quisesse. Ela também confiava muito no filho.
- Então, como é, Mestre Miguel? - perguntou o homem.
Arrependido do que prometera antes, Mestre Miguel arranjou a desculpa que faltava:
- Só se o menino quiser.
- Não, eu não vou! - disse o garoto, e saiu correndo, chorando, em busca de D. Zefinha.
O velho Moura Fé, ouvindo aquela negativa, fica de cara transtornada e trata de arranjar uma meia desculpa:
- "Queria só experimentar por algum tempo, e se o menino gostasse..."
Seu projeto tão bem intencionado fora por água abaixo.
Que o garoto soubesse, ele não possuia filho macho, nem possivelmente fêmea. Ou se os tinha, viviam longe, eram grandes e independentes. Sua casa era triste, apesar dos sorrisos e da bondade dos seus donos. A partir daquela data, entretanto, o menino passou a vê-lo com outros olhos: de temor e não amizade. Queria tirá-lo dos braços de sua mãe, para onde? para quê?
Naquele tempo, Chico não tinha meios de interpretar o pensamento do pai. O que lhe ia pela cabeça e por dentro do peito para entregar a outrem o único filho homem, nem que fosse por pouco tempo? Que estava acontecendo? Porque, no fundo, no fundo, o menino nunca pensou, uma só vez, que fosse por falta de amor. Cadê a fé em Deus e nos homens, para ajudá-lo a ganhar o sustento da mulher e das crianças, três naquele momento?
Após o episódio envolvendo o filho e o marido, D. Zefinha não confiou mais em ir dormir na casa do senhor Moura Fé. Passou a procurar a casa de seu Quinco Marinheiro. Ali se considerava mais segura, além de garantir a ceia para todos.
O velho pai de Chico sempre fora um forte. Mas, a falta de emprego e a fome que rondavam a família obrigou-o a apelar para o velho Moura Fé, naquele momento.
Todos têm o seu dia de fraqueza.
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*Francisco Miguel de Moura, escritor brasileiro, mora em Teresina, Piauí. E-mail: franciscomigueldemoura@superig.com.br