Dizia Machado de Assis que escrever é como sarna: quando se pega não despega mais. Dizia ainda que, na mocidade, pode-se dizer que é coisa da idade, mas aos cinquenta anos não há jeito que dê jeito nisto. No meu caso, como estou mais para a meia-idade do que para a mocidade, posso dizer que esta sarna já tomou conta de mim totalmente. Por isso, Ã s vezes, quando sou acometido deste mal, quando ele se manifesta sem que ao menos eu saiba o porquê, começo a escrever assim... como estou fazendo agora, e não paro mais. Falando nisto - já sentindo as manifestações da maldita sarna, certo dia, ocorreu-me um fato muito pitoresco, sobre o qual prometi para mim mesmo escreveria.
Recebi minha notificação de Imposto de Renda. Para minha surpresa, dizia ela: "... este documento mostra como ficaram os dados de sua declaração após o processamento...". Notei que nada havia mudado desde quando, como bom cidadão brasileiro, havia entregue - diga-se de passagem dentro do prazo - minha declaração de Imposto de Renda, desta feita no estilo Primeiro Mundo, ou seja, via disquete de computador. A notificação ainda dizia, e aí a minha maior surpresa: "... restituição encaminhada à Caixa Económica Federal, Agência 0249, Rua 7 de Abril, 345, São Paulo, SP". Porém, eu havia entregue a declaração no Banco do Brasil! Na agência próxima de onde trabalho! Ainda me lembro muito bem que, durante o preenchimento da declaração, como era obrigatória a menção de uma conta corrente eu havia, lógico, mencionado a minha conta corrente e o banco da minha preferência. Afinal, o que teria acontecido? Por que mudaram o banco, a agência, enfim tudo? Cheguei a pensar que se tratava de uma nova e elegante maneira da Receita Federal lidar com seus contribuintes que, atendendo a seu pedido, fizeram as declarações no computador, facilitando enormemente seu árduo trabalho de conferência e bisbilhotice sobretudo, economizando tempo, papel, dinheiro, etc., para um país que tenta entrar - à s duras penas - para o Primeiro Mundo em tecnologia, cultura, informação, etc., etc...
Chegando à tal agência da Caixa Económica Federal, logo concluí que certamente havia cometido muitos erros na minha declaração de Imposto de Renda. Pelo tamanho da fila que me aguardava, imaginei que a penitência que deveria cumprir naquele dia seria mesmo muito grande. Calculei que deveria existir cerca de sessenta pessoas na minha frente e, aí então, acho que todos que lá estavam já tinham feito o que fiz, ou seja, perguntar a si mesmo: Volto amanhã? E se amanhã estiver pior? Volto mais tarde? Não, mais tarde não dá, até ir e voltar já acabou o dia. Será que vai melhorar? Quem sabe mais tarde este monte de gente desaparece de uma hora para outra? É... só mesmo se fosse em mais de uma hora que aquela filinha em forma de ziguezague desapareceria. Fiz meus cálculos: um caixa levou quinze segundos para atender um cidadão, um outro levou quarenta e cinco e um terceiro levou um minuto e trinta e cinco segundos. Não dava para fazer média, os extremos eram distantes demais, não havia um padrão de atendimento. O jeito foi ficar com a mediana, ou seja, cerca de um minuto por pessoa, calculando que levaria no mínimo sessenta minutos para chegar a minha vez de ser atendido.
Bem, pensei com os meus botões: o que se pode fazer em uma hora? Eu mesmo respondi: dá para ir de avião até o Rio de Janeiro, correr quase a metade da ma-ratona da cidade de São Paulo, assistir a meio tempo de uma partida de futebol ou não fazer absolutamente nada e ficar ali em pé, de castigo, olhando - como dizia minha mãe - um para a cara do outro, pois este era um dos castigos frequentes que ela aplicava a mim e ao meu ir-mão quando fazíamos qualquer traquinagem na qual os dois eram culpados.
Logo, comecei a me irritar pois o tempo passava e a fila. Ah! A fila não andava de jeito nenhum. Senti vontade de xingar, cuspir no chão, ler um manifesto de desrespeito ao contribuinte, mas nada fiz. Contudo, ouvi uma voz ao longe que dizia, como se alguém quisesse me desafiar: Pacato cidadão... Pacato cidadão. Controlei minhas vontades, desfiz os pensamentos de selvageria, mas continuei ouvindo a voz que dizia: Pacato cidadão... Pacato cidadão. Achei que estava ficando louco, mas não estava não, era apenas o refrão de uma música qualquer que andava tocando por aí - se é que andava mesmo, pois insistia em vir à minha mente, como se tivesse acabado de ouvir a tal música por diversas vezes. Concluí comigo mesmo: loucuras da cidade grande que não conseguimos explicar.
Comecei então a imaginar possíveis soluções que resolveriam o problema da morosidade da fila. Uma delas pensei - já com outros botões, pois os primeiros já haviam sido gastos anteriormente - seria se houvesse um ou dois caixas específicos para a rotina da restituição, melhoraria a rapidez no atendimento, isto porque na fila, pasmem... Havia pessoas com depósitos em dinheiro vivo e, mesmo assim, pacientemente aguardavam a vez. Se fosse eu, abriria uma conta em outro banco ou guardaria o dinheiro embaixo do colchão. Hoje em dia dá no mesmo.
Nestas horas você começa, pela falta do que fazer, a reparar no comportamento das pessoas que estão à sua volta. Eis que me dou conta de que as duas colegas de fila que estavam à minha frente tagarelavam como se tivessem batatas quentes embaixo da língua. Falavam, falavam... O tempo todo. Falavam a respeito de uma amiga em comum, a qual pelo visto tentava segurar um casamento, que na opinião das duas amigas já havia acabado há muito tempo e não passava do jargão soçaite manter as aparências. Hipocrisias da sociedade debatidas em programas de televisão, divã de psicanalista, botequim de qualquer cidade brasileira. E a conversa não tinha fim. Era mais ou menos assim:
- Eu acho que ela devia deixar dele. Ela é muito boba.
- Eu também. Mas sabe que eu ouvi dizer que ele... (Não ouvi o restante.)
- É uma pena. Não sei como as pessoas conseguem viver assim. Tinham tudo para ser feliz. Estão bem financeiramente, casa na praia... Mas se eu fosse ela...
- Ah! Sabe aquela vez que nós fomos até a casa deles. Depois que saímos da piscina, ele veio falar comigo. Assim meio sem graça, né... (Virei-me para outro lado e perdi o final da história.)
São nestas ocasiões em que você se dá conta de que se esqueceu de levar consigo algumas coisas úteis, como por exemplo: um radinho de pilha, ou melhor, um walk-man, pois o radinho está fora de moda. Uma garrafa de café ou como fazem os gaúchos que levam consigo uma garrafa d´água, a colher e o pote com a erva do chimarrão... Não é mesmo, chê? Ah... Já me ia esquecendo de outra coisa importante também: uma confortável cadeira de praia, daquelas que esticam e fazem você ficar cara a cara com o astro-rei, fazendo-o adquirir, em poucos minutos, aquela cor que você certamente não queria, ou seja, avermelhada, como a do pimentão. Aquele comprado na feira-livre de todos os domingos, onde o mesmo japonês sempre lhe pergunta:
- Vai hoje pimentão?... Tá baratinho, né? Um real só.
Nas idas e vindas da fila, notei um cidadão feliz. É... Tão feliz que estava assoviando uma música que não era a Pacato Cidadão. Prestei bem atenção. De vez em quando, otimista, parava de assoviar e dizia para sua filhinha de cinco ou seis anos de idade:
- Saindo daqui já vamos pra casa. Já já tamo em casa.
Este cidadão, podemos dizer pacato como eu, deixou-me aliviado com a sua atitude otimista. Todavia, cheguei a pensar que ele estava a fim de manter a calma diante da filha, mas logo concluí que o sujeito era mesmo um otimista, pois já era quase a minha vez e ele lá... Quase no final da fila, de cócoras, assoviando, sorrindo e tagarelando com a sua filha que, assim como outras pessoas, já estava sentada no chão, cansada de tanto esperar. Coitadinha. Tão jovem e já tendo que enfrentar a sina de todo brasileiro. Filas e mais filas que nunca terminam.
Já com os últimos vestígios de paciência que me restavam, suportei com heroísmo digno de medalha de cidadania brasileira os derradeiros minutos que me separavam do atendimento. Contive, porém, a fúria abominável que tomava conta deste sujeito, cujas pernas quase adormecidas já não obedeciam ao comando do cérebro a fervilhar de argumentos e razões de sobra para reclamar contra tudo e contra todos. Porém, o que adiantaria tudo isto? Perguntei a mim mesmo. Provavelmente conseguiria ser notícia dos jornais por um dia, não mais que isto e ainda com manchetes do tipo: Bancário revolta-se contra o sistema. Baixaria do contribuinte acaba em pancadaria. Maluco roda a baiana na Caixa e vai em cana. Já pensou o escàndalo? Depois de tudo, ainda seria mais um desempregado à procura de emprego. Não em banco, claro.
E foi assim que este pacato cidadão, depois de mais de uma hora de penitência, recebeu de volta os trocadinhos retidos indevidamente no ano anterior pela Receita Federal, não disse uma palavra sequer de descontentamento, sorriu forçosamente para a moça do caixa, dirigiu-se à Rua Sete de Abril, atravessando-a apressadamente, entrou num táxi, contou sua história aos pedaços para um motorista assustado, chegou atrasado no trabalho, tomou uma bronca danada do chefe, explicou... explicou... mas de nada adiantou...