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Cronicas-->Inseto -- 01/04/2007 - 21:57 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Raras vezes eu me surpreendo com alguma coisa, faz parte de nossa experiência de vida, dizem que a maturidade nos faz apurar os sentidos e os julgamentos. Ao mesmo tempo, nos tornamos mais justos e menos tolerantes aos fatos comezinhos que tanto atrapalham o desenvolvimento de nós, tolos mortais. Um telefonema esquecido? Liga-se outra hora. Um negócio se perdeu por isto ou um relacionamento se desfez assim? Ora, por tão pouco? Então ou não era bom negócio ou de amor de verdade só tinha a fachada. Aliás, a fachada, como é notável essa face que nos propomos ter, para que mantenhamos uma apresentação que evidentemente funcionará como uma máscara, uma espécie de cartão de visitas de nossa pessoa na Sociedade, essa enorme entidade que ou nos faz sua parte ou nos cospe para longe, a depender de como nos portamos ou vestimos. Você, em suma, é o que aparenta ser e principalmente, hoje em dia, ter é muito mais do que ser. Ser você mesmo hoje em dia, nos tempos do politicamente correto, geralmente nos traz entraves e dificuldades às vezes intransponíveis; melhor dizer o que gostariam que ouvissem de você e você, de tantas vezes que treinou a falar o que os outros queriam ouvir, constata com inegável prazer que você sabe dizer o que eles querem na hora que melhor lhe convém ou quando lhe perguntam algo e lhe olham nos olhos, exatamente procurando o que querem ouvir de você naquela determinada situação e você solta a pérola, exatamente como aprendeu e atinge em cheio o alvo certo de novo, galgando com isto postos de confiança, pulando etapas que duram muito mais aos que ousam dizer o que pensam. Não que o que você pense seja diferente, apenas sabe que o que deve ser dito em determinada e tal situação é aquilo, só para que deixe de ser o foco e este passe a outro sujeito, evidentemente pior preparado para enfrentar as adversidades da vida, talvez por ser mais jovem, talvez porque veio de um meio sofisticado que lhe traz a falsa idéia de que prosperará se disser o que pensa. Falso engano, pobrezinho e você tem pena da reação que sua ação provoca e sente sua alma fruir o fracasso alheio como o seu sucesso baseado em evidências, de que a vida não passa de um amontoado de respostas-padrão que você aprendeu e que você sobrevive não porque sabe mais que o outro, mas porque aprendeu a mentir descaradamente, mesmo sabendo que a mentira é totalmente contrária às suas vísceras, apenas você mente porque precisa do dinheiro, precisa viver e alimentar suas vicissitudes, sua intensa busca pelo que ainda não houve, essa sua busca por algo que nunca chegará.
Eu falava que nunca me surpreendo ou quase nunca. Eu me enganava então, porque a surpresa me pegou hoje. Constatei que ainda sangro ao fazer a barba, achei que já não tinha sangue nas veias, ou que ele tinha mudado de cor para o sangue de um inseto. Mas sangrei e a dor que senti não foi de mentira, como minhas lágrimas de falsa dor ao ouvir o chefe ao dizer que um parente seu se afogara em sua banheira; muito embora sua primeira reação seja: Como, raios, alguém se afoga na própria banheira e vem á sua mente a imagem de um imenso homem cercado de comida a flutuar de barriga inchada numa tina de Ofuró... Não, diz o chefe, ele morreu de infarto mesmo. Infarto, esse inimigo que persegue a tantos que conheço. Todos com minha idade, meu chefe chama a atenção disto, era tão jovem!... Raras vezes me surpreendi, mas confesso que aquelas palavras vindas de quem executava tantas funções naquela empresa, pronunciadas pela mesma boca que destilava o veneno dos destinos de todos o que o conheciam, sim, aquilo me deixou atónito. Tão atónito fiquei que tive de me levantar, não sem antes olhar profundamente os olhos de uma jovem de beleza invulgar que me fitava da sala vizinha, insistentemente, e pegar o bule de café que teimava em ser ruim (o que não deixava de ser novidade ali) e tomar uma dose dobrada. Eu sorvia o café e este me aclarava as idéias para seguir o dia, mas lá estava o olhar da bela morena da sala ao lado da minha. Bem, ela não estava lá antes, não no dia anterior, mas agora ela existia, estava lá aonde antes existiam papéis de fax, aparelhos de transmissão de dados à distància e dois servidores dos mais velozes da empresa. Seja o que for que fizesse, devia ser importante, pois a sala era dela agora.
Passei pela sua sala, até porque era vizinha à minha e lá estava a belíssima morena, seus olhos fixos em mim assim que eu apareci. Mais uma de minhas surpresas desse dia, já sangrara e soubera que não era inseto afinal, embora às vezes quase me convencesse disto (muitos me apelidavam de "Kafka"); agora a surpresa era esse olhar límpido e agudo, perscrutador.
Resolvi me apresentar. Justo eu! O inseto em pessoa. Mas ela merecia, tanto que eu me apressei em lhe oferecer o que mais sabia fazer, antes de desferir meus mortais golpes nos momentos mais decisivos: Um copo de café.
--Aceita?
--Com prazer.Estava mesmo precisando!
--Roberto.
--Taís. Prazer!
--O prazer é meu. Você é nova aqui?
Com uma fluidez maravilhosa, Taís disse que viera de outro departamento e seu novo desafio era implementar uma política de contenção de gastos na área de insumos. Morava na cidade há pouco, cerca de um ano, era nova, mas tinha uma capacidade de decisão que me deixava impressionado. Como disse, quase nada me surpreendia hoje, mas aquela moça com sua vitalidade me pareceu um vulcão em erupção, suas lavas prolíficas a nutrir um mundo combalido, suas encostas férteis a povoar as planícies da mesmice com frutos novos, ávidos de brotar em sua presença.
Seu olhar me deixou maravilhado. Dona de um sorriso como poucos, quem entrasse pela sua sala de crescente importància era bem atendido e seus olhos sempre me procuravam antes das decisões. Muitas vezes me pedia ajuda e eu notava as inflexões de seus pedidos pelo brilho de suas pupilas um tanto esverdeadas nas decisões mais sérias, um tanto escuras quando estava entristecida, um tanto luminosas quando estava apaixonada.
Com uma naturalidade de quem se apossa de uma terra nova, ela se apossou de mim e eu deixei de ser um inseto; deixei de ser desprezível e já ninguém me chamava de "Kafka". Nossas salas se tornaram as mais importantes do Andar, a ponto de nosso chefe nos colocar juntos na mesma sala que se expandira e adquirira agora o status de gabinete. Eu sabia que isso antecipava decisões maiores e eu trabalhava como nunca em minhas esquivas funções, mas com ela por perto era diferente. Até o café, antes sem gosto, renovava seu sabor como por milagre, quando soube que quem o fazia era ela, deixando boquiaberta a funcionária que antes o preparava e que ela mesma fazia exercer outra função no agora gabinete que nos abrigava, enquanto subíamos de importància e nossos encontros à noite se tornavam mais numerosos. Minhas escapadas eram proporcionais à nossa importància, de tal forma que era compreensível que eu tanto me ausentasse em nome de meu progresso pessoal e mentisse mais a quem menos merecesse mais uma de minhas mentiras. A única coisa que eu sabia era que minha companheira de sala não mentia quando ficava comigo. Nossas decisões muitas vezes eram tomadas à beira do leito, como médicos de almas às avessas no palco pouco iluminado do quarto que servia como nosso refúgio secreto. Assim muitas decisões foram tomadas, assim tocávamos nossas vidas paralelas e meu mundo antes tão amesquinhado e falso aos poucos se enchia de uma poesia que eu me acostumara a ver rarear depois de atingir certa idade.
Raras vezes me surpreendo, mas naquele dia os olhares me evitavam e eu subi o elevador com a estranha sensação de já haver sido vivido, de já haver experimentado aquela atmosfera e não foi surpresa alguma eu entrar em meu gabinete e encontrar a mesa onde ela estivera ontem vazia. Ao procurar seus lindos olhos, nada achei e ao tomar o café, este veio com o velho sabor de pó envelhecido, voltando às eras de quando era preparado sem gosto e sem alma.
Em minha mesa, um bilhete.Seria o famoso manuscrito de minha despedida?
Meu coração gelado, preparado há muito para este momento, me fez abrir o envelope maquinalmente, já embalando minhas coisas numa caixa de papel que eu sempre reservara para este fim (outros ali me chamavam de "Doutor Destino", sempre antecipando o inevitável,o indizível...). O que li sim, me deixou cheio de frio horror, de surpresa dolorida.
"A Empresa Communicator Associados tem a triste e dolorosa tarefa de comunicar o falecimento de sua diretora da área comercial, Tais de Souza, em terrível acidente esta manhã. Todos os procedimentos ficam por conta de nossa firma; o velório será..."
Um por um, entraram os que trabalhavam comigo no andar. Eu estava chocado, ninguém sabia de nós, mas eu a deixara sã e salva em casa por volta das onze da noite; ela não ligara, sabia que eu era casado, éramos discretíssimos e só. Porém, um a um, todos agiam como se soubessem de nossa ligação, não tanto por havermos denunciado algo, mas pelos olhares que ela me oferecia. Era muito querida a moça, por mim e por todos.
Não fui ao seu enterro. Não poderia jamais ver aquilo tudo.Não depois do que nós dois havíamos vivenciado juntos... Jamais pensei que pudesse sofrer assim de novo. Até minha esposa notou o sofrimento.
--Tão jovem, não, querido?
--Sim. Tão jovem e promissora!
Um vulcão em permanente ebulição, suas lavas fertilizando as encostas ávidas de idéias novas. Um vulcão que submergira feito Krakatoa, explodindo em fumaça e esquecimento.Belo, poderoso e esquecido! Assim se fora um sonho e eu sabia a extensão da perda que havíamos sofrido, mais do que ninguém. Uma última vez fui ao hotel que era nossa morada secreta; paguei a conta e peguei algumas coisas dela que ainda estavam lá e as joguei fora ali perto mesmo.
Conversei com meu chefe. Decidi que devia sair, ele entendeu. Decidiu que eu deveria esperar, dar um tempo, dando-me total liberdade de escolha. Saí dali para a rua e vagueei com o carro, as janelas abertas, em claro desafio aos que me viam sem paletó e sem gravata. O que mais desejava era uma arma, um cano apontado à minha cabeça, mas no fundo, sabia que esta era mais uma de minhas mentiras das tantas que aprendera em vida, a suprema mentira de se vitimizar e sofrer para apaziguar o demónio interno, arrefecer o quanto de vida fora perdida para sempre, enfim...
Não me surpreendi quando na rua me abordaram no trànsito. Uma mão enluvada jogou um bilhete dentro de meu carro. Pensei em um assalto, porém olhei à frente do carro, instintivamente.
À frente, ia uma motocicleta; na garupa, uma linda morena me olhava, um olhar que eu conhecia bem.
A dor no peito veio logo em seguida.
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