Embora uma família aparentemente normal, penso que tínhamos um traço de maluquice, quando fomos morar em uma pequena chácara próxima do Poli Esportivo. Os filhos eram pequenos (Guilherme, Luciana e Liliana: 6, 4 e 2 anos de idade).
Um dia, surgiu do nada um desenho numa das paredes da sala de jantar. Bronca leve, desmaiada -o desenho era bonitinho. Dias depois, outro desenho engraçadinho e outra bronca frágil, acompanhada da exigência de que o autor ou autora apagasse. Ninguém apagou, dedou ou castigou. O desenhinho ficou e os pais fingiram miopia, combinados em não sufocar a criatividade do futuro (ou futura) artista -a cada dia o desenhozinho parecia mais engraçadinho. Mais desenhos e até pinturas surrealistas, neo-acadêmicas, figurativas ou artisticamente inclassificáveis foram surgindo, agora claramente de autoria de mãos diferentes, em silêncio lealmente compartilhado pelos três anjinhos.
A omissão passou a comprometer a autoridade paterno-maternal. Convocou-se a Assembléia Geral Extraordinária. Solenemente instalada, passaram as partes a parlamentar e a democraticamente decidir.Por escrito, a oposição propós: 1. deixar a parede como estava; 2. liberdade total aos promissores artistas; 3. plena e irrevogável imunidade a castigos; 4. o fornecimento do material necessário ä continuidade da arte; 5. ampliação da área do exercício vocacional desenvolvido -foi assim que escreveram. Juro! Colhidos os votos em urna secreta, a oposição venceu por três a dois. A partir daí, a sala toda se transformou em um mural consagrado pela vontade popular e pelo incentivo dos amigos -aqui pra nós, um extenso e adorável mural: as paredes recobertas por flores, carinhas, casinhas tortas (algumas sem portas), galinhas de quatro patas...
O que destoava era a reação horrorizada de parentes e de alguns visitantes despreparados para a largueza da arte. Olhares surpresos ou disfarçados, comentários intrigados, irónicos...
E nós, nem aí!...