Olho para ela: Seus olhos já traem a idade, seu brilho já não se defende mais da passagem do tempo. Ela se movimenta, célere ainda e suas mãos hábeis fazem as panelas saltarem no fogão, que deixam no ar a passagem de seu talento e de seu tempo esquecido . Sua face denota preocupação e no entanto ela tenta me deixar à vontade, falando sobre sua vida, suas pequenas coisas ainda em andamento. Emagreceu visivelmente e eu me preocupo.
--Não é nada, estamos passando por uma má fase, você sabe. Tudo se resolve enfim!
Ela protesta quando eu a chamo à responsabilidade, tem se cuidado, tem dormido direito? Ela:
--Esta é boa, nesta altura tenho de dar satisfação de minha vida.
Não compreende que todos somos reféns do tempo, todos somos parte de um único dia Cósmico e que eu se um dia dependi dela, tenho de lhe dar o retorno, delicadamente. Firmemente.
Seus olhos são sua alma ou sempre foram, agora são fugazes os brilhos, são móveis as órbitas, numa fuga que me assusta sempre que tento sondar o que há sob a superfície de suas pálpebras. Não, definitivamente algo não vai bem e eu, como grande curioso que sou, mais uma vez insisto. Ela, breve, corta minha inquisição e se mostra desenxabida com minha insistência. Tanto mais que meu olhar a irrita, melhor deixá-la em paz.
Houve um tempo em que fomos reféns de seu silêncio ou aprovação, houve um dia em que tudo que havia partia daquelas mãos, como uma fonte inesgotável de luz e sombra, alegria e tristeza, revolta e assombro. Como são frágeis estes dedos que parecem quebradiços! Como soa distante todo e qualquer sentido que havia em seus gestos repetidos... Eu não sabia, o tempo dela passou, ela sofre em silêncio no limiar de uma velhice que eu não deixarei que ela toque no vão da pobreza nem do sofrimento. Atormenta-me saber que isto está próximo, fantasia que jamais pude alimentar, tal o turbilhão de vida que me absorveu e absorve. Eu sinto o quanto fui distante dela e dele, sinto que esta distància separou minha infància irremediavelmente de minha maturidade. Mas ela ainda está aqui, entre nós e eu a vejo separar o joio do trigo com unhas espertas, os gastos olhos a mirar ainda o infinito.
Talvez o tempo seco esteja influenciando nossas peles, mumificando nossos sentimentos, secando nossas bocas, porém, dentro de mim, a fonte ainda borbulha, o brilho ainda se exprime e eu posso fazer o que acho mais certo, que é estar perto dela.
Penso que apesar de tudo, de tão difícil, apesar de toda uma era, cheguei tardio em boa hora.