Ele nunca esteve preocupado, até porque viviam em paz. Uma càndida paz que conquistaram ao correr de anos. Via sinais de que o porto se aproximava, aquele porto onde as relações vão dar, todas: Um estuário de felicidade, mas uma felicidade que se amolda ao outro. Um amalgamar-se, ele percebia em que até as idéias de um eram os espirros do outro. Isto de um lado pode ser bom, já não há aquela vicissitude em que um e outro reclamam tão ferozmente no início:
--Mas ela de novo, estava com dor de cabeça!
--Ele, de novo, esqueceu a data de nosso namoro!
Coisas comezinhas que se passam como gigantescas um dia, evolam-se no ar dos tempos da convivência e se há uma palavra que explica tudo é, a um tempo: Conveniência. Pouco romàntico? Sim, mas não. Definitivamente, talvez.
Porém deu com ela um dia absorta. Deu com ela na cozinha olhando o teto e as paredes recém-pintadas, os armários trocados há alguns anos. Geladeira de aço escovado, fogão com seis bocas e ela de boca aberta, nos lábios um esgar de sorriso que ela se permitia dar. Isto, numa hora inverossímil.
--Não vai dormir?
--Agora?
--Cedo?
--Não. Quero ficar aqui... Tudo bem?
--Deixo acesa a luz.
Ele sentiu uma espécie de dor. Viu algo nas paredes que não se dera conta: Ele e ela envelheciam juntos. Os filhos estavam se encaminhando, muito trabalho agora rendia os frutos. Uma jornalista, outro quase advogado e a menor uma atriz em permanente ebulição, sempre a pedir a proteção da ursa mãe que lambia as crias de prazer e apreço. Mas ele sentiu um travo amargo, como que um tremor lhe aconteceu quando se deitou. Tudo bem, saúde boa até então para os dois, mas aquele sorriso lhe deu nos nervos.
No dia seguinte, antes de pegar as coisas para trabalhar e levar a menor ao ponto de ónibus de onde ela dizia que ia ao curso da EAD, ele se viu perguntando:
--Tudo bem?
--Tudo...
--Estou achando você estranha...Tudo bem mesmo?
Ela o fitou e ele sentiu que seus olhos viam o que ele não queria e ela via o que os seus olhos conheciam à beça, aquele sorriso que vira em outros lábios, aquele cinismo que sobra ao fim de uma descoberta de algo secreto. Notou naquele olhar um traço de escrutínio, como se uma inevitável comparação se fizesse. Sentiu-se desconfortável novamente, como se fosse uma ante-sala de exame, como se estivesse num consultório abarrotado de gente aflita e ele no meio da espera.
--Mas o que há com você?
--De marcação?
--Desde ontem este sorriso.
--Não posso sorrir?
--Não disse isto. Você sorri sempre. Você é uma das pessoas...
--...Mais alegres que você conhece.
--Sim.
--Pronto! Continuo sendo!
--Acho que vou me atrasar.
--Tchau!
A porta do carro se fechou depois que deixou a menina no ponto. Ele se viu só e a música só reforçava sua lembrança dos olhos da mulher, do sorriso dissimulado. Ele agora notava sinais que jamais pensara captar: Um telefonema em hora inadequada, um atraso para chegar em casa, uma estranha ausência em dias antes decisivos. Não, definitivamente, talvez, ele não quisesse ver nem saber. Mas afinal, eram há tanto tempo amigos que um dia ia acabar acontecendo. Pouco romàntico? Talvez, não. Definitivamente algo estava acontecendo.
Quando chegou em casa, levou flores mas ela não estava.