Você leu em revistas ou recebeu pela internet aquelas mensagens de auto-ajuda propondo atitudes pra ficar de bem com a vida e encontrar a felicidade? Sem dúvida, algumas são boas e bem elaboradas.
Mas você deve ter notado que muitas delas propõem sempre aquela fórmula simplista: "esqueça o passado, rasgue tudo e faça uma fogueira, apague as lembranças, vire a mesa, jogue tudo no lixo, recomece a vida agora..."
Não sei como você encara esses conselhos, mas quando vejo essas coisas fico curioso para saber quem são os iluminados que produzem essa sabedoria. Alguma geração de terapeutas formados na escola do menor esforço? Uma corrente filosófica construída sobre premissas da pedra lascada?
Falam em deletar o passado como se o ser humano fosse arquivo de computador. Ora, quem viveu sem passado foi Adão. E o que não tem raiz é prótese dentária. A identidade também não se joga fora, porque quem faz isso se complica na blitz.
Falando sério, o fato é que esse sofisma da receita fácil parece aconselhamento para antas e similares.
Reconhecer os próprios erros é honesto, mas arrancar páginas viradas é recurso truculento. Arrepender-se é humano, formatar o disco é apelação fácil, arriscada para o hardware e inútil para o software. Pedir perdão é nobre, mudar a identidade é covardia. Começar de novo é digno, falsificar documentos é mascarar o caráter. Assumir conflitos íntimos é sinceridade, travestir-se pode ser desastroso. E se o terapeuta sempre sugere que façamos esses atalhos a facão, humm...
Propor esse simplismo primitivo para complexos males contemporàneos parece coisa de quem desconhece as conquistas do conhecimento humano e o amadurecimento da ética.
Quem nega para si mesmo aquilo que viveu está, no mínimo, subestimando o inconsciente, que tudo percebe, tudo registra e tudo cobra a seu modo e a seu tempo, como Freud se cansou de provar...
É claro que os ecos do passado não devem fazer do destino uma marcha em círculos nem obstruir a chegada do futuro. Com sua pena genial, Machado lapidou essa verdade: "a vida é uma lousa, em que o destino, para escrever um novo caso, precisa de apagar o caso escrito."
Mas não se apagam os casos escritos com uma palavra de ordem. Tampouco esmurrando o divã ou pisoteando o sutiã.
Certa vez, conversando com uma jovem de passado amoroso instável, perguntei se ela trazia muitas recordações. Orgulhosa, confidenciou-me que a única recordação que guardava era a foto de uma linda fogueira. Fez a foto no dia em que incendiou todos os álbuns, vídeos, cartas e demais lembranças de tudo que passou. Pensei em perguntar-lhe se isso a fizera mais feliz, mas seus olhos, sempre distantes e opacos, já continham uma resposta.
No fundo, é isso: queimar as lembranças pode dar uma sensação de bem-estar -- que tem a mesma duração da fogueira.
Figuras famosas podem ter tentado essas fórmulas. Mas se observarmos caso a caso, encontraremos tristes razões por trás daqueles que quiseram incinerar seu passado. Edith Piaf, grandiosa ao cantar Non, Je ne regrette rien, tinha fortes motivos para "varrer as lembranças". Michael Jackson desfigurou o rosto e viu sua pele clarear... Mas é improvável que se tenha reencontrado. Entre os desumanos, Mengele e alguns carrascos também tentaram apagar tudo e recomeçar artificialmente, por motivos que todos bem sabemos. E se é verdade que Nero incendiou Roma, talvez pensasse que daí em diante seus ultrajes se tornariam cinzas.
Assim, é certo que a possibilidade de destruir as páginas viradas pode até ser uma dádiva para alguns. Como concluiu Ambrose Bierce, o esquecimento é um dom concedido por Deus aos devedores para compensar o fato de não terem consciência.
Entre Machado e Bierse, fico com as reflexões de Santayana, em Vida da Razão: "os que são incapazes de recordar o passado são condenados a repeti-lo."