Na tarde chuvosa, borbotões de água tamborilavam no teto de telhas velhas e quentes, o vapor extravasava se misturando ao cheiro acre da chuva que levantava rodopios e remoinhos sonoros nos cantos de sua casa solitária, no alto da montanha isolada que era o local que escolhera para morrer. Ele escolhera aquele canto porque sabia que outro não haveria tamanha sua sensação de bem estar estando ali. Outro não saberia o que fazer, decerto, porém ele, sempre com seu espírito independente e sereno, em pouquíssimo tempo decidira sua vida, eliminando as arestas que ainda a tornavam insuportável.
A dor, por exemplo. Já se desesperara muito com a náusea desencadeada pelos espasmos de dor que tinham até cor que ele definira como a cor da mortalha, um roxo que se confundia com os temores de sua infància triste, cor dos mortos que vivera, mas era assim agora, ele aprendera a domar a fera do sofrimento com os mantras de que dispunha, e a dor que porventura resistisse evaporava em meio à inundação de consciência que ele promovia em torno de seus outros estados mentais.
A água lá fora, ele ouvia, tomava a forma dos muitos riachos que se formavam, agora se dissolvendo nas esquinas, com a fumaça dos bueiros deglutindo as enxurradas que, ele imaginava, deviam se formar nas ruas do povoado que o conhecia como o "barbudo da montanha", descendo eventualmente para prover sua casa do básico para não morrer de tédio ou de fome. Comprava uma pilha de revistas que alimentavam suas fogueiras (vistas de baixo como sinais luminosos à distància) depois de lidas, relidas e trelidas. Os livros ele os guardava em sua estante que sobrara de seu apartamento da cidade grande, inútil paisagem que esquecera de tão longínqua. Tinha um Hemingway, tinha Cortázar, tinha clássicos como o Homem de La Mancha, outros menores e outros maiores até. Ele os degustava, coisa que não fizera enquanto se preocupara em encher o rabo de dinheiro, até se fartar e defecar de volta ao mundo que não merecera um vintém de sua dedicação quase anónima, quase maníaca.
Que vida ele levara? Fora um homem decidido, tivera amigos e mulheres, tivera amantes e até um sonho: Nada levara a lugar algum. Um dia, disse: Cago-me para tudo e sumiu, deixando a vida para trás, sem dívidas (que saldara), sem mulheres (que dispensara), sem amantes (que pagara) e sem aluguel para se preocupar. Deu as chaves do carro de luxo ao amigo mais chegado que com lágrimas nos olhos ouviu dele o seguinte:
--Vende. Joga no precipício, aluga pras putas, dá para os moleques. Vira-te.
Aí, subira a montanha. Um bangaló que vira num anúncio que parecia predestinado a ser seu, porque era inóspito como sua alma difícil, porque ficava longe de tudo--como ele queria-- e porque tinha uma vista do vale abaixo que lhe dava as últimas alegrias. Decidira:
--Aqui, sim, vou dar cabo de tudo um dia.
O falcão concordava com ele e guinchava lá do alto e sabia que sua carne um dia lhe pertenceria quando ele estivesse acabado para tudo, seria então parte de seus filhotes, assim pensava a ave de rapina no alto da montanha que servia de anteparo ao sol que se punha no horizonte, enquanto o velho homem se ajeitava, com uma dose de seu licor amargo e os olhos turvos pela neblina dos anos. Tudo começa um dia, raciocinava o solitário montanhês, tudo se acaba hora dessas. Ele olhava para cima e via a majestade do vóo do falcão, seus olhos agudíssimos a fixar a presa a quilómetros. Como ele, antevira aquele terraço natural num sonho, um dia depois de chegar do trabalho, moído nos ossos depois de passar por mais um engarrafamento. Ligou para sua ex-mulher que mais uma vez, se debatia em uma questão fundamental.
--Querido, estou desolada!
--Com o quê?
--Não sei se hoje compro um casaco de vison para ir à vernissage ou se vou mais esporte mesmo, com esta moda de ecolalia...
--... Ecologia...
--... Sim, com esta moda, capaz de me pegarem no pé. Que você aconselha? Estou desolada...
--Use aquela roupa esporte que você usa sempre para as festas e recepções: é infalível!
Eles, separados, tinham mais a ver agora que juntos, muitas vezes ele se pegava dando conselhos a ela de como se vestir e como receber as pessoas. Ela invariavelmente ouvia. Dava certo. Ela foi do jeito que ele pediu e foi ali que ele decidiu, depois que pegou seu copo e o encheu de uísque, que era hora de desaparecer.
Toda decisão vem carregada de outras sub-decisões, ele agora podia ver isto com certeza. O tempo passava devagar, mas ele nunca respirara um ar tão puro nem pudera notar o quanto este mundo nos reserva surpresas notáveis. Como no dia que descobrira ter um càncer, de certa forma incurável, porém de evolução lenta. Ele se recusara a operar, pois se vivera até agora, com sessenta e sete anos é que não haveria de se mutilar para viver mais dez, quinze anos? Para quê?
--Respeito sua decisão. É sábia, porém posso lhe assegurar que a cirurgia é uma oportunidade de cura. Por outro lado, podemos controlar os sintomas...
Assim ele tomou a decisão de somente tratar a eventual dor que sentiria. Anos? Meses?
--Números não existem nesse caso. Podem ser anos, podem ser meses. Mas aconselharia que deixasse tudo em ordem...
--... Tem certeza que quer isto de seu carro?
--Tenho. É seu: você sempre mereceu mais do que realmente tem. Sempre fomos sócios, mas eu sempre levei a melhor. Está na hora de reparar!
--Mas...
Viu o amigo e sócio antigo se afastar com seu carro, depois de passar a ele o número de sua conta para que pudesse depositar todo mês a parte que lhe cabia na sociedade da firma que ele recebia como compensação por haver contribuído de modo decisivo com seu passado e presente. O que o futuro reservava a ela, isso ele nunca haveria de saber.
Mas, naquela noite, depois do vison e da ecolalia, ele tivera o sonho do terraço da montanha, sentira até o sabor da terra e fora ali, naquela noite que, depois de se saber doente, de dar o carro para o amigo, de se despedir dos colegas de trabalho, fora ali que se tornara um habitante das montanhas.
--Tem certeza de que está bem aqui?
O olhar de sua filha traía certo nojo, certa náusea que combinava bem com sua figura de gente bem cuidada, do tipo que não olha nem as próprias unhas depois de cortadas por receio de se haver ferido. Bem próprio dela este esnobismo falso, afinal o casamento dela lhe dera um status ainda mais alto do que o que tivera enquanto ela esteve em casa junto ao casal que lhe dera amparo por mais de vinte anos. Ele olhava para ela e via as cenas de infància, ela andando de um lado a outro na casa, escorregando através da barreira de móveis que a mãe pusera entre a sala e a cozinha para que ela tivesse tempo de fazer a janta, coisa que a pequena adorava evitar, pois que se punha a pedir colo e se não atendida, instaurava o caos com seu choro. Ele a olhava e mal podia acreditar que depois de tantos anos ela se transformara naquele lindo ser, naquela diáfana criatura, de olhos esverdeados, pele branca e lindos seios. O olhar sempre atento a ele sempre se distraía quando ela vinha ao bangaló, invariavelmente sozinha, pois seu marido era um empresário muito ocupado, sempre em viagens que lhe tomavam tempo e dias, até semanas. Ela aproveitava o tempo entre as exposições de pintura e vinha passar uns dias em sua casa de campo, seu lar agora.
--Tenho sim, filha. Com certeza!
--Está se alimentando bem? Estou achando você mais magro.
--Nem sua mãe se preocupa tanto!
Ela dava uma risada e o clima se dissipava, ela atenuava a tensão contando fatos ocorridos em sua última exposição, quadros que lhe rendiam elogios e lágrimas. Contou de um quadro que quase lhe rendeu um caso extraconjugal e da falta que sentia do marido. Ela olhava o teto e com uma ponta de tristeza, com sua voz suave dizia que se pudesse recomeçava do zero, mas havia muitas coisas a pesar... Por exemplo, o filho que planejavam, como daria certo com um pai tão ausente?
--Você me achava ausente?
--Não... Quer dizer, Ã s vezes sentia sua falta, mas a mãe sempre me distraía quando me levava ao cinema e depois íamos ao teatro juntas, então... Mas sentia sua falta sim.
Era o tempo de calar e refletir e olhar os cílios dela baixos, rememorando nas entranhas tudo o que dissera enquanto ele ficava com o copo na mão, pensando no que devia falar, cuidadoso com as palavras, pois nestas horas elas ferem como raios, nestes momentos aprendera que o silencio vale ouro. Era o tempo de ela se levantar, pegar uns copos e dar um jeito na casa.
--Homens! Olhe só esta sala! Precisa de uma coisa aqui, outra ali...
E quando ela partia, dois dias depois, era como se houvesse passado um anjo por ali, tudo em ordem, tudo mais limpo, tudo rebrilhando. Como um tesouro assim podia ter ficado tanto tempo aferrolhado em sua prisão urbana? Como o tempo houvera passado sem que ele se desse conta de quanto esta moça se parecia com sua ex-mulher e como era mais abnegada como ela jamais fora? Mesmo sendo esnobe, mesmo tendo boa origem, se desarmava bastando poucas palavras. Precisara de uma vida toda e agora que ele aprendera, ia vê-la partir, novamente, para que pudesse compreender que o ouro reluz nas sensações mais ocultas e simples.
Assim que ela sumia na estrada, ele se via a sós com sua pequena biblioteca. O som do falcão ao fundo ecoando no vale da montanha, os sons do vento a sussurrar nas copas das árvores submissas ao seu poder, o sol batendo de lado nas colunas da casa, o Vale se descortinando abaixo dele, perto da cerca, tudo isso lhe deu a sensação de já haver vivido tudo isto, aquele momento lhe deu a sensação de ter completado um círculo, aquele milissegundo lhe trouxe um filme de todas as suas boas horas naquela terra que o receberia um dia, grata por poder abraçá-lo de volta, ele voltando ao útero da Grande Mãe Terra, ele deixando suas partículas fazerem parte dos rios daquele vale, o falcão finalmente satisfeito por dominar de novo os platós que sentia como se lhe pertencessem, como sempre fora desde tempos imemoriais, voando em gerações de seres voadores como ele, que descortinavam o horizonte a quilómetros, a distància como um sonho a ser percorrido... Ele pensou nisso tudo naquele mágico momento, ainda com o perfume de sua filha pairando no ar e com o copo cheio de gelo e restos de bebida.
Pegou o livro, um dos seus favoritos, em que um velho luta com o mar e suas borrascas e principalmente com um conhecido que ele espreita há anos e que finalmente um dia terá de fisgar, um peixe antológico. Ele sabe que, assim que o fisgar, o devolverá ao mar, como a vida que levara finalmente o colocará em porto seguro, em terra firme na sua pequena embarcação. Sua aventura então terá chegado ao final e Hemingway faz deste livro uma antevisão de sua própria trajetória, como se com o fim de seus dias estivesse atrelado ao pescar do velho ao mar. Ele manuseava o livro com cuidado, saboreando as páginas que conhecia de cor, pois que fora seu livro de cabeceira na juventude, quando sonhara navegar pelos mares desconhecidos e só conseguira a paz para fazê-lo agora, ao fim de sua jornada. Ele ouvia os rumores de todos os animais silvestres que aprendera a respeitar, o silvo de um inseto, o zumbido de uma colméia, o balir de uma cabra da montanha, o pipilar de mais um pássaro estranho e o guincho do falcão a dominar o vale ensolarado.
Estaria na hora de recolher os lençóis que ela pendurara.
Ele, em breve, dormiria sua última noite cheia de sonhos riquíssimos.