Dois amigos, num encontro marcado, dez horas da noite, cervejas e cigarros...
--Você está me contando uma história meio confusa. Esse carcamano anda por aí?
--Não mais. Pelo menos não me lembro de tê-lo visto mais.
--A casa. Existe?
--O que importa?
--Dá mais verossimilhança.
--Caramba, hoje em dia nem escrever sobre uma possível ficção pode mais.
Os dois discutiam no bar, cercados de fumaça por todos os lados. Muita gente falando alto, os dois meio que doidões pela cerveja excessiva que costumavam tomar goela abaixo nestes encontros.
--Então, deixe-me ver. Existia um tal de Ettore, publicitário famoso, pai de uma filha tesuda, artista, ex-casado com uma dondoca linda e metida a intelectual. Ele tinha sócios honestos, ele era forte e determinado, mas grosso e mal-educado.
--Bingo!
--E você acha que isto dá samba?
--Apenas eu conto a verdade; se vai dar samba...
Olhava o copo e a morena que tinha um belo corpo sentada à sua frente que sempre que podia, lhe dava uma olhadela. Ele sabia que se daria samba, teria companhia para dançar.
--Mas, o que você acha?
--Tem muitos envolvidos. Não é meio perigoso?
--Bom, eu não sei o que meu pai vai achar, mas eu não o deixei ler ainda. Certamente vai me pedir para tirar uma parte.
--Toda a parte, você quer dizer?
--Mas não foi você que acabou de falar em "verossimilhança"?
--Falei?
A morena deu uma outra olhada e ele se controlava para não fazer um beijinho para ela pois o seu amigo estava entre ele e ela e não queria que o outro percebesse.
--Poxa, já está bêbado.
--De jeito e maneira. Aliás, percebo boas figuras neste seu texto. Você podia aceitar certas críticas.
--Por exemplo?
--Eu acho que devia pincelar melhor o Ettore. Deve dar mais nuances a ele. É uma pessoa complexa, ardente. Podia dar uma noção de sua vida anterior ou de sua vida interior. As coisas acontecem meio rápidas aqui hein!
--Bem, meu pai disse que a coisa andava meio assim no meio deles mesmo. Tudo era rápido, tudo meio instável. Casamentos de desfaziam em questão de meses, meninas novas se juntavam aos chefes... Para você ter uma idéia, meu pai casou três vezes. Eu sou o filho mais novo.
--Verdade?
--Com certeza! Aí estou falando de minha vida. Ele tem três famílias. Uma, a original. Dois filhos. Outra durou meses com sua secretária, mas nenhum filho. Aí, ele conheceu minha mãe, fazendo uma campanha de sabonetes. Modéstia à parte, minha mãe é linda até hoje.
--Édipo...
Os dois gesticulavam alegremente, soltos nas lembranças que se confundiam nas cabeças deles. A morena visivelmente interessada no rapaz de olhos escuros e cabeleira arrepiada que se destacava do outro como água para o vinho. Será que notara que mexera com ela? Como fazer uma aproximação sem ser ridícula, sem ser grosseira ou mostrar que estava por demais interessada? Podia passar por ser fácil e ela sabia por experiência própria que esta é uma característica das que menos agradam ao homem. Ela sabia que ele lhe lembrava alguém, talvez do meio publicitário. Ela era modelo, das que fazem campanhas e o rosto daquele rapaz se destacava em suas memórias. Era um rosto talvez assemelhado com alguém que conhecesse; talvez alguém que houvera conhecido bem de perto.
--Não sei se Édipo. Minha mãe realmente é linda.
--Tem uma irmã, que eu sei!
--Pare de falar nela. Da última vez, brigamos!
O outro, sabendo o terreno minado que pisava, tratou de retirar-se do terreno.
--Pois eu a acho linda e você sabe disto. Mas deixe para lá. Fale-me mais de Ettore!
A morena olhava agora em cheio seu rosto, como se a memorizar seus traços todos comparando com traços outros que já conhecera. Do alto de seus vinte e poucos anos, grande parte dos quais dentro de estúdios e desfiles, como jamais reparara em rosto tão bonito? Ele, do outro lado da mesa, com o amigo escondendo sua visão, dava mostras de crescente interesse. Parecia absorvido em contar uma história e seus olhos se inflamavam quando ele abria a boca.
--Bom, Ettore. Ele devia ter uns cinquenta e tantos anos quando resolveu deixar tudo para trás. Morava só numa casa que sua filha frequentava, mas a ex-esposa nunca ia. Sei que ele era chegado em uísque, nada de drogas. Uísque, cigarros e charutos cubanos. Amava Fidel.
--Viva Fidel!
Os outros olhavam para seu amigo, evidentemente embriagado. Mas houve quem até levantasse a voz a saudar com um "viva" em resposta. O Grande Comandante nunca fora tão lembrado, principalmente agora, no final de sua vida cheia de aventuras. Doente, alquebrado, mas vivo e ainda ralhando com os companheiros.
--Ettore me lembra Fidel, sabia?
--Por que você diz isto?
--Porque você me conta que ele era persistente, lutador e determinado. Fidel foi tudo isto e mais um pouco: Levou a revolução a um país cheio de putas!
Risadas os fizeram bater mais um copo.
--Viva las putas!!
Mais gente os olhava agora, a morena com um sorriso indecifrável e irresistível. Ele sabia que agora teria de sinalizar algo e pediu ao garçom que levasse um bilhete a ela. Discretamente, quando ela pediu uma bebida, ele lhe entregou o bilhete e ela acusou o pedido com um sinal que ele conhecia bem: Um olhar de derreter poste e o bilhete colocado entre os seios, discreta e decidida. A noite, definitivamente, começara para ele.
--Sei que Fidel livrou o país da miséria, mas a que custo!
--Falta tudo lá.
--As coisas mudam. Mudaram na vida de todos os que meu pai conheceu. Este livro que eu escrevo tenta reproduzir isto. Mas falta tanto para melhorar!
--Acho que uns molhos cairiam bem. Veja: mais profundidade, mais erudição.
--Erudição?
--É. Você fala de Hemingway, de Maugham, de Cortazar. A História só os cita, mas nenhum trecho de qualquer livro.
--Verdade. Mas as coisas mudam!
--Você já falou isto muitas vezes hoje. Estou começando a me preocupar!
--E você esqueceu o que falou agora há pouco: Eu estou realmente preocupado. Veio de carro?
--Vim.
--Te levo em casa, você não me parece bem!
O outro, pálido, levantou e foi ao banheiro, vomitar. Era fatal, sempre que vomitava, voltava meio sóbrio e aí sim, ficava mais fácil conversar com ele e convencê-lo a parar. A morena viu que o outro saíra. Levantou-se decidida, foi à sua mesa.
--Posso?
--Nossa! Que honra!
--Gostei do que escreveu...
--Espero não ter sido ousado. Você é linda, sabia? Certamente, é modelo.
--Sou mesmo!
--Ah, porque senão eu ia pedir para ser seu agente!
Os olhos dos dois se encontraram e parados, se fitaram por alguns segundos, o suficiente para ele saber o que ela queria dele e ela saber que o havia conquistado, mas não uma conquista destas descartáveis, até porque ele tinha nos olhos a alma estampada e nem o álcool turvava sua razão potente e sua vontade de se sobressair que ela intuía nos mínimos movimentos dele, além de sua beleza estranha.
--Eu adoro escrever, sabia?
--Então, é escritor?
--Sou jornalista. Porém, adoro escrever coisas sobre a vida de pessoas.
--Espero que não saiba nada que desabone a minha para poder escrever algo sobre ela um dia que eu possa ler deliciada...
Seu amigo voltava agora. Ele chegou à mesa, incrédulo com aquela belezura pousada ao lado dele.
--Vou ao banheiro de novo. Estou alucinando!
--Calma, calma! Ela estava na outra mesa! Nem perguntei seu nome, olhe só!
--Regina. Você?
--Otávio, o eterno bêbado!
Sorrindo meio de lado, ela o olhou nos olhos.
--E você?...
--Ricardo.
Ela se levantou e fez um gesto imperceptível, demonstrando a ele que o papel entre seus seios seria em breve usado e deixando próximo a sua mão outro minúsculo pedaço de papel que ele guardou no bolso da camisa. Até porque seu telefone estava escrito ali.
--Tenho que ir, meninos. Amanhã tenho uma sessão de fotos que vai durar horas. Podem acreditar, horas!
Levantou-se, saiu e roçou o braço de Renato de maneira proposital. Disse tchau e foi para a outra mesa, onde ficou por mais algum tempo.
--Isso sim é que é material para um livro!
--Ela? Meu deus.
--Que Cuba, que Fidel, Que Ettore, que nada. Ela é a permanência eterna, é a natureza imanente!
--É o jogador de xadrez de meu tabuleiro! É meu xeque-mate!
--Acho que você está bêbado.
--Mas foi você que vomitou!
--OK. Vamos voltar à vaca fria.
--Seu livro?
--Poxa...
--Desculpe.
Um silêncio se instalou ali, mas aos poucos o outro foi rindo devagar...
--Natureza imanente!
--Tabuleiro de xadrez! xeque-mate!
--Viva Fidel!
--Viva las putas!
Bateram outro copo.
A bruma azulada fazia as cabeças se dissolverem em uma mistura de álcool e fumaça de cigarros. A morena se levantou e vários olhares se voltaram à moça, um belo exemplar de mulher. Ela se foi e ele sabia que ela o olhara de longe, mandando um sinal que ele jamais recusaria. Foi ao banheiro e ao passar pelo bar, pediu um telefone e marcou com ela um encontro que decididamente iria marcar a sua vida para sempre.