Quando me lembrei de que o copo ia escorregar de minha mão, já era tarde. Correu o precioso líquido pelas minhas pernas, misturado a outros não tão nobres, vejam minha precária situação. Eu não tenho solução, sou um ente sem eira nem beira, um desvalido pobre e sem irmão algum. Sou sozinho, vivo enjeitado, nas praças eu durmo sentado, olho a lua por um triz, como assim um enfeitiçado.
Maldita meretriz que me jogou assim no fundo do poço dos rejeitados, o que não faz uma desclassificada para se desfazer de um que já não gosta, mas se aproveita. Foi assim, eu sou apenas o bagaço da laranja que sobrou e de fruta seca, elas não gostam, seu moço.
Eu não desconverso quando o assunto baila por estas estúpidas megeras. Não que eu não goste, nas praças eu ainda posso dar conta, é só elas se darem conta de que eu ainda existo, ora bolas. Fogem todas! Porém, quando o assunto é ela, eu enraiveço e jogo longe o desafeto que coloca em minha cara:
--Corno!
Ah, aí o macaco vira gorila e o desgraçado perde a dentadura, sem piedade ou dó. Não sou Jó para ouvir tolice sem reagir! Se o indivíduo em questão soubesse a metade da missa, ia sentar comportadinho, pedir da água que o passarinho não bebe e se fazer de ouvinte comportado. Sem reclamar...
--Passa a garrafa aí que eu estou com sede!
--Já viu a lua hoje?
--Já.
--E que tal?
--Vá se danar.
Já corto o mal pela raiz, eu não estou deitado em uma rede, estou vivendo à beira de um precipício, arriscando a vida nas quinas da cidade, sem fazer alarde e o outro vem com esta história da Lua! Ele que se encha de coragem para começar o que eu geralmente termino. Nunca fui santo! Defendo o meu, é a lógica das ruas que me rege e mais de uma vez...
--Verdade que já foi bem de vida?
--Não digo que sim, nem que não. Talvez.
--O que faz aqui, nessa miséria?
--Passa o melzinho que te conto...
Tome garrafada, estouro ouvido de longe e mais um que corre de medo do que virá a seguir. Por que as pessoas adoram escarafunchar assuntos que não interessam? Vivo o dia a dia, umas horas eu quase durmo, mas só de pensar na visão da lua, me abandono ao devaneio e revejo o rosto da vagabunda. Não tenho sossego, é minha sina, o olho do gato me acha mesmo no mais escuro dos becos, questão de tempo de espera. Sento a bunda no asfalto e recolho as coisas que uso para manter meu compasso. Um relógio velho que não funciona, uma panela escura; uma colher que já não uso mais garfo. Um banquinho de madeira que me serve de apoio nas horas de esmolar e um canivete antigo achado em uma lixeira.
Os meus amigos me contam que eu durmo de olhos abertos, sempre atento, o olhar fixo na luz da lua que cresce no horizonte.