Sempre amou a fotografia. O instantàneo que tirava era a perfeita tradução de todo um estado de espírito e quando se resolvia acordar feliz, suas fotos saíam mais coloridas, como saíam em preto e branco nos dias em que se sentia solitário. Na verdade, a fotografia, como dizem algumas tribos de índios, realmente eterniza e rouba a alma do fotografado, aprisionado numa cápsula do tempo que o impede de sair como numa gaiola onde se aprisiona um pássaro canoro. Dentro desta perspectiva, o filme nada mais é que a captura integral do movimento das almas das pessoas, congeladas instante a instante nos quadros da película, animados por roteiros que reiventam suas vidas falsas, como a fotografia pode nos dar a estranha noção de que naquele exato e preciso momento, o sorriso da bela não deixa entrever o olhar da fera que a corrói.
Foi assim que ele, munido de sua potente máquina, entreviu entre um arbusto e uma arvoreta o vulto daquela que o perdeu para este mundo, pois que era uma fugidia presença e ele a notou assim que o foco do zoom capturou o movimento das saias coloridas que ela portava, os panos mal cobrindo as maravilhosas coxas da dona de um sorriso matreiro, misterioso e sedutor. De imediato, ele mudou seu foco de tema e passou a fixar os olhos das pessoas que ali passavam, misturadas ao calor da tarde que crescia no tempo, na corrida em direção ao final do horizonte onde o carro de Apolo já olhava o mundo de maneira saudosa. Entre uma foto e outra, os calores dos coloridos panos, o movimento ritmado de sua passada oblíqua, tudo somado a um cabelo perfeito, um pescoço alvo e longo e orelhas de perfeita simetria. Ah, sim, ela agora era o alvo constante de suas tomadas, como se com aquilo ele pudesse tecer a história daquela alma que Luzia ali, como um pirilampo, em lampejos de vida e despreocupação, Ã borda do lago que se fora e voltara cheio de destroços e plantas e vigas e flores de mato.
Ela errava e flutuava talvez presa a algum sonho antigo, talvez um amor abandonado como aquele lago ou uma flor que pendesse de seus cabelos com um vago perfume de uma tarde triste de antes, de muito antes que aquela tarde colorida e cheia de presságios; ele sabia, oh, como sabia, que aquele sorriso maroto, aquela presença em permanente flutuação, aquele rosto de uma perfeita maestria de suas emoções, como uma miragem, era o que de mais belo havia ali, na hora avançada de um outono crepuscular. Admirado de olhar, ele a esculpia em sua memória enchendo-a de carnes, as coxas habitando seus lençóis e seus braços enlanguescendo aquela cintura linda. Os cliques zumbiam em sua mente, os instantes de condensavam em presença, o objeto de seu desejo crescera no tempo-espaço e ela, tridimensional, habitava a tela de seu coração, munida de uma força que o dominava de tal forma que ele era, antes de observador, um mero espectador da natureza de suas emoções incontroláveis.
Ela assim o olhou primeiro com alguma surpresa, depois com certo abandono, depois com indisfarçável mal-estar para finalmente se render, exausta, à s suas provocações de longe e ao fundo. Ela não se furtava a assumir a posição de observada e a cada mirada, se tornava mais bela, mais ardente ao pegar uma flor, mais distante ao olhar a linha do céu poente, mais enxuta em seus gestos e mais decidida em suas intenções. Não se queixou, porém, pois podia ter simplesmente se misturado à multidão que a cercava mas não, aceitou o papel de musa, sentiu-se importante e por que não, desejada pelo estranho homem que a alvejava com lentes coloridas, cada vez mais de perto, ela regateando seu espaço como uma corça fugidia, de olho no predador, olhos enormes e pele pintada de sardas.
Ah, decerto foi assim que começou a saga dos dois, que em momento algum jamais esqueceram que aquelas fotos, mais do que o registro de almas, mais do que a captura de um sonho sólido, mais do que a composição de um futuro a ser olhado, muito mais que tudo isto, era o princípio de algo bem mais complexo e cheio de nervuras, tal como uma folha de tenra árvore, em meio a uma chuva torrencial, com sua enorme potencialidade de se erguer no mundo e ao mesmo tempo tão frágil.
No clique seguinte, curvou-se sobre os lábios da musa.