Encontrei a moça aos prantos. Ela chorava sem esconder sua mágoa de ninguém, do tipo que chora sem vergonha nenhuma; era um lamento ao mesmo tempo dolorido e vistoso.
--Ele me paga!
--Quem é ele?
Voltou a chorar e que remédio? Eu era o único que poderia ouvi-la. Engraçado como, nestas horas, todos se afastam, como se o choro dela transmitisse uma doença. Sabe quando um epiléptico cai no chão e todos têm medo de tocar nele porque se acha que a saliva do doente transmite a doença? Pois é.
--Ele é ele, ora. É um panaca. Estragou minha vida, mas ele me paga!
Vistosa a menina; dona de um belo par de coxas realçadas por uma saia justa, do tipo que sai do lugar a hora que ela queira ou que queiram. Incrível deixá-la assim, só, chorando sem socorro algum. Não podia deixar de estender minhas mãos, um abraço amigo nestas horas faz a diferença. O que me remete diretamente aos meus amigos queridos que me chamam de grande santo, reputação ilibada que tenho. Podem comprovar!
--Mas que mal afinal o panaca fez a você?
Ela olha incrédula para mim, erguendo a cabeça num movimento gracioso que combina com seu fino pescoço e um par de olhos crava-se em minha bondosa face, interessado que estou pela beldade que se esvai em lágrimas que escorrem pelo seu rosto.
--Não interessa!
--Opa, eu sou todo ouvidos. Estava passando e vi você chorando e sabe, não posso ver uma moça assim chorando que quero logo ajudar.
--Você tem um bom coração. Está em sua cara.
Não sei se ela falava com sinceridade mesmo ou se já antevia meu bom espírito samaritano, o fato é que foi se acalmando e respirando fundo enquanto eu lhe oferecia lenços de papel para que assoasse o nariz, charmoso nariz de ponta fina, encimado por um olhar que devia ser matador, quando ela estivesse melhor. Claro está que o garçom do bar já preparava uma boa dose ao meu sinal, velho conhecedor de meus hábitos de frequentador antigo daquelas paragens.
--Vamos para um lugar mais agradável?...
...E a levei á mesa do barzinho. Lá estavam duas doses do melhor uísque, grande amigo do homem nessas e noutras horas.
--Quer um cigarro?
--Obrigada.
Tomou o cigarro entre os dedos com maestria de fumante inveterada. Rodeou a boca do copo com os dedos indicador e médio e desatou a falar daquele que lhe fizera mal.
--Ele me paga!
--O que realmente foi o que ele fez a você?
--Deixou-me na mão. Fiz o que fiz por amor, sabe e ele dizendo que ia ficar comigo, só comigo e nada mais. Bela ilusão.
Por falar em mão, a minha já estava em seu ombro direito, enquanto a outra pegava o copo e levava à boca uma dose da bebida envelhecida em tonéis de carvalho. Ah, como me lembro dessas palavras, envelhecida em tonéis!
--... Aí ele me deu o anel. Esse aqui: olhe! Bem esse aqui. Prometeu mundos e fundos, disse que ia ficar comigo, a outra que se danasse, coisa e tal.
--Bem se vê que ele tinha muito bom gosto.
Um certo olhar de fúria inibiu mais um comentário sarcástico, eu tenho jogo de cintura nestas horas mais agudas.
--Digo, um anel assim não se dá para qualquer pessoa. Vê-se que ele gostava mesmo de você, apesar de tudo.
--Se gostasse, havia de ter ficado comigo e não ter me deixado aqui esperando por horas para no fim, sumir do mapa sem dó nem piedade. E eu, fiz o que fiz por amor, movida a paixão. Ele me enganou.
--Tem homem que é assim mesmo. Diz um monte de coisas, promete o mundo e vai ver, é tudo mentira. Diz que é uma coisa, que trabalha e tal, é vagabundo de nem ter lugar onde morar.
--Nossa, ele não era tudo isso não. Mas cafajeste isso ele era sim. Tanto era que depois do anel, nem um nada mais ele me deu! Nada mais!
Voltou a chorar e fui obrigado a secar uma lágrima que escorria pelo seu queixo, num gesto que a enterneceu. Afinal, ninguém é de ferro. Ela me olhou nos olhos e empertigou o corpo, sinal de que a terapia de choque já funcionava. Sentia que era estudado e expunha o mais que podia meu rosto de homem vivido e ela com seus olhos perscrutava meus sentimentos que à quela hora teimavam em manter-se escondidos. Sou lá homem que vou me entregar assim tão facilmente!
--Bem, e você já está se sentindo melhor?
--Melhor; aliás, foi bom desabafar com você aqui.
O sinal de cabeça era a dica ao garçom que sabia de minha fama e trazia mais que breve outra dose do cachorro engarrafado. O olhar dela ora se dissolvia e recordações, ora se perdia em uma bruma crescente que a bebida traz de presente à s almas que se tornam suas presas. Não que a quisesse bêbada, digamos assim, algo mais relaxada. Uma mão das muitas que eu tinha já palpava sua cintura e ela certamente não estava indiferente, tanto que me olhava cada vez mais interessada enquanto eu lhe contava as vantagens do acontecido a ela, quanto sofrimento havia sido evitado, quantas falsas coisas ela poderia ter sofrido, que descaminhos a poderiam ter levado a cantos obscuros sem que ela tivesse controle; o mundo é cheio de safos e de mal-intencionados.
--Você tem razão. Sabe? Você tem razão.
O jeito como pegou o cigarro traiu sua condição. Ela precisou de minha ajuda para acender dito cujo enquanto ela sorvia mais uma dose da santa fermentação. O garçom olhou do alto de sua malícia e fez que sim com a cabeça; era o momento de salvá-la de si mesma, era o momento de escoltá-la a um canto mais seguro, como um cavaleiro da távola redonda levava suas mulheres à s torres dos castelos.
--Podemos ir a um lugar mais tranquilo ainda, se você quiser.
O suave aquiescer só fez aumentar a voltagem de minhas várias mãos, qual deus Shiva em massagens ritmadas em seus ombros. Levantamos e ela, meio tonta, teve de ser amparada. Claro está que eu estava ao seu lado, incansável guerreiro, e lhe guiar os passos para que mais uma vez, mas pelo menos dessa vez, ela desse o passo certo em sua vida de garota abandonada.
O garçom, mais entendido do que eu nesses assuntos de dor de cotovelo, fez gesto de anotar na carteirinha; Mais uma para a coleção, ele deve ter murmurado. Eu sei que meus amigos sabem que tenho um coração do tamanho do mundo!