Tinha desistido e conquistado a liberdade. Seus planos de altos cargos, família unida que passa os feriados em Caraguatatuba, beber uma cerveja no final de tarde enquanto passeia com o cachorro, respeito de seus pares, de seu sogro, tudo, absolutamente tudo que havia planejado tinha ido pelo ralo, tinha se transformado, se tornado distante, tinha se decomposto, já não era importante. Largou tudo, contas, possível sucesso, discos do Bob Dylan, liquidificadores, cigarros, amores, carros, perfumes importados. Desatou do tornozelo a corrente que lhe prendia a coisas que lhe disseram serem boas, legais, importantes, mas nunca se preocuparam em provar o que diziam. Preferiu provar também o outro lado da moeda. Saiu com a roupa do corpo num rompante de amor á vida, a real, e verdadeira, a única possível. A única forma de tomar uma decisão dessas é assim, num rompante emocional, naquele instante em que se entende profundamente, em que sente de fato sua alma transbordando, logo, se não fizer nada naquele momento vem a razão e toma o cabresto e a rédea de novo de sua vida e te induz a pegar o controle remoto da TV e zapear e esquecer aquilo tudo porque onde você está, o que você se tornou, aquilo que conquistou já esta de bom tamanho e que condiz exatamente com os sonhos mesquinhos e egoístas que sempre teve. Somos induzidos a nos contentar com pouco, com migalhas, com raspas de tudo que é grande, nunca usufruindo disso tudo por completo. Ficamos supostamente contentes com raspas de vida, raspas de amor, migalhas de felicidade. E achamos que já está bom, dizendo: _Melhor isso que nada! Aí mudamos de canal e o comercial nos promete perder 20 kg em 2 meses tomando um milk shake de merda, outros que se usarmos aquela roupa comeremos todas as mulheres lindas do planeta, que se tivermos aquele determinado carro seremos alguém, que só encontraremos a felicidade se comprarmos naquele determinado supermercado. E o que nós fazemos? Tomamos o tal do milk shake com aquela marca de camisa dentro daquele carro enquanto estaciona naquele determinado supermercado. As pessoas têm medo em não fazer o estabelecido. Mas ele não. Talvez fosse inteligência mesmo todos jurando que era uma burrice fazer aquilo, abrir mão de suas conquistas materiais, de seu carro novo, seu home teather, suas facas Ginsu.
Ele saltou do barco, pulou no mar. Todos que ficaram no barco em alto mar esticaram o braço, oferecendo a mão para puxá-lo de volta, mas ninguém em nenhum momento da vida sequer molhou a canela naquele mar, onde ele nadava, não sabendo pra onde, desde que fosse o mais longe possível daquele barco, de sua segurança fajuta, de sua falácia sem conteúdo, de sua multidão sem face, sem voz, sem alma, de seus governos e governantes, religiões, vizinhas fofoqueiras. Quando olhou pra trás pela última vez viu pintado no casco: Sociedade; esse era o nome do barco. Puxou ar e nadou com nunca e o mais rápido possível, pois sabia que se olhasse de novo pra trás as facilidades e falcatruas oferecidas pelo barco e por seus habitantes são de fácil aceitação, ilude, corrompe o mais digno homem, cega, e como um sonàmbulo voltaria a enganar-se e viver uma vida acorrentada novamente.
Não tinha perguntado onde era a praia mais próxima, ou a ilha, apenas se livrou das correntes pesadas que segurava, prendia, acorrentava sua vida. Tanta angustia, raiva, decepções condicionadas e alimentadas pela ganància, pela miséria human(a + itária), pela corrupção, pelo descaso, pelo egoísmo. O que será que estamos pretendendo com o rumo que estamos dando ás nossas vidas? Onde queremos chegar, senão no esgoto com tudo isso? Pra quê tanto disso tudo? Porque não sabemos ou não queremos olhar pro lado, perceber a vida e simplesmente vivê-la em sua plenitude? E isso não tem nada a ver com ganhar bastante dinheiro, comprar coisas, possuir objetos. Será que nos falta coragem, sabedoria suficiente? Desprender-se de coisas que nos prendem e que não possuem valor algum na teoria não parece ser tão difícil assim. Livrar-se disso tudo que nos angustia, que não podemos comprar, ter, usar, comer. Porque nunca queremos muito aquilo que podemos comprar, aquilo que possuímos, aquilo que temos acesso? Isso tudo nós só queremos. O que queremos muito, demais, é algo sempre inalcançável, armando assim a própria arapuca contra si mesmo, um auto-suborno, uma auto-sabotagem, compló, gerando assim decepção, sensação de incapacidade, desolação, culpa, tristeza, sendo que, de fato, não precisamos de nada, absolutamente nada que já não esteja em nós, dentro de nós. Só nos falta saber ver, saber entender, descomplicar-se para si mesmo, desnudar-se de superficialidades materiais e apenas ser o que se é, apenas ser simplesmente. Tudo que precisamos é aquilo que somos. Não somos as fantasias que vestimos pra nos enganar, pra enganar o mundo inteiro, pretendendo ser a fantasia mais bela, colorida ou cara. Temos que nos esforçar para uma elevação mental, de consciência, nos tornar soberanos sobre nós mesmos, sobre nosso ego, donos de nossos caminhos, escolhas, baseando-se no que gostamos, amamos, sem se preocupar com o estabelecido. Chega de fé em coisas que não existem, crença em mitos, deuses, céu e inferno, juízo final. A onda agora é a sabedoria, é a conscientização, a percepção de nós para com o mundo e vice e versa, da natureza, do planeta, do nosso planeta, esse grãozinho de areia perdido no infinito que tem bilhões e bilhões de anos e que não vai a lugar nenhum. Mas nós sim. Nós vamos morrer um dia, e essa constatação não deveria ser algo que entristecer-se. Só morre o que está vivo e exatamente por isso já basta pra felicidade; o fato de se estar vivo.
E você, me diga, está?