Noites e mais noites em bares, Ã s vezes, não é como brincar de ciranda cirandinha com crianças bem nutridas, felizes e saudáveis. Captei a luz do lugar assim de relance. Era algo néon, estranho, feio pra cacete. Ouvia vozes de longe, vozes de pessoas; vozes de compaixão, vozes de ódio, acho que eram vozes. Senti que segurava um copo e sabia que estava deitado. Olhei pra minha mão e vi um copo brilhante, único, supremo e fantástico de cerveja gelada, com dois dedos de espuma; perfeito. O mundo inteiro merecia estar ali no meu lugar, pensei. Senti algo gosmento escorrendo da testa, passando entre meus olhos que olhavam apaixonadamente o copo, contornando o nariz e entrando pelo canto da boca, umedecendo a bituca de cigarro que se encontrava ali no seu canto. Senti um gosto adocicado. Meti a mão no meio da cara, a distanciei um palmo e olhei. Era um líquido vermelho, espesso, fosforescente. Sangue, só podia ser. Captei a luz do lugar de relance. Já não era néon, mas sim de um pálido luar. Tentei me levantar e ai soube pela primeira vez na vida o que era sentir dor de verdade. Veio-me a idéia de ter sido atropelado por uma Scania, mas achei pouco. Talvez um trem. Ainda pouco. Talvez uma mulher, uma paixão, um amor perdido. Mesmo assim, ainda era pouco. Virei o perfeito copo de cerveja gelada com dois dedos de espuma goela abaixo. Sabia que iria precisar de outro logo. Mas tinha me esquecido como falar. Noites e mais noites em bares, Ã s vezes, não é como um brincar com um filhotinho de labrador num gramado bem aparado. As vozes não cessavam e se misturavam com minha voz interior que tentava de todas as formas compreender simplesmente o que estava acontecendo e depois me contar. Tateei meu bolso e não tinha nada além de vazio, escuridão e fome. Tinham roubado meu dinheiro, os guardanapos com alguma indecência escrita, meu lápis já sem ponta, minha honra e uma foto 3x4 de minha amada. O líquido espesso e vermelho continuava a escorrer por minha cara como uma cascata. Apoiei-me na cadeira quebrada que estava ao meu lado. Sentia, pressentia que nos últimos 2 minutos algo bom, saudável e amoroso eram as únicas coisas que não tinham acontecido naquele lugar. E não sei por que eu me sentia pivó daquilo tudo. Escutei uma mulher, menina, criança, moça, senhorita, sei lá, perguntar se eu iria sobreviver, e repetir a palavra coitado por três vezes. Noites e mais noites em bares, Ã s vezes, não é como colher jabuticabas para vovó fazer geléia pro lanchinho da tarde. Consegui, trópego, cego e desfalecido sentar-me na cadeira quebrada. Levantei a cabeça e senti o peso do mundo, como se o mundo inteiro estive ali dentro querendo sair de qualquer forma. Olhei ao redor e vi pessoas, ou pareciam ser, ou talvez fosse só carne moída de segunda e músculos e um coração de enfeite, sustentados pelo esqueleto. Voltei a baixar a cabeça porque a poça de sangue no chão era algo mais belo, mais poético que tudo que estava ou não acontecendo ao meu redor. Todos ali pareciam esperar avidamente pela primeira palavra que eu iria jogar no mundo, que eu iria vomitar no ar. Todos queriam alimentar sua mórbida curiosidade, apostando consigo mesmo que eu iria dizer isso, que eu iria dizer aquilo. O sangue gotejava pelo nariz. Voltei a olhar pra frente e foi quando vi. Um corredor humano e um ser ao final dele. Aquele cara parecia uma jamanta de gomex no cabelo e camisetinha baby look. Nesse momento eu ri. Mãos fechadas em prontidão, posição das pernas de boxeador amador, cara de ódio de mim, do mundo, da vida, pela brochada no dia anterior decepcionando a namorada, saliva branca no canto da boca e olhos amedrontados. Noites e mais noites em bares, ás vezes, não são como brincar de lutinha com a nova namorada linda na cama de casal da mamãe. Captei a luz do lugar. Néon, de novo. Captei também o que tinha acontecido. Esse completo idiota me deu um cruzado certeiro no meio da testa, pensei. Mas porque, me perguntei. Foi quando, com uma força sobrenatural, as que me restavam consegui girar a cabeça num àngulo de 10 graus a esquerda e a vi. Ela brilhava, ela sabia de tudo, ela era tudo. Seu corpo não tinha nada fora do lugar, fora de proporção, fora de alguma coisa que estivesse dentro. Foi por ela. Eu tinha olhado pra ela, era isso. Mulheres, um dia elas nos matam ou chamam o namorado pra nos matar por elas. E nós matamos por elas, inventamos guerras por elas, comemos alface, rúcula e peixe grelhado por elas. Ela estava orgulhosa, soberana, ela sabia de tudo que acontecia no mundo, na índia, no Sri Lanka, em Connecticut. Será que nós só sabemos realmente que estamos vivos quando estamos pra morrer? Senti-me vivo naquele momento. Perdendo sangue, dedos apontados para mim, risos, pena, dó, amor não correspondido. Eu não queria saber o que era certo e o que era errado, frio e quente, distante e perto. Eu queria saber o que era o meio, o meio mais rápido e seguro de sair dali. Eu e o jamanta estávamos no palco, alimentando vampiros, satisfazendo a alma atormentada da vida, acariciando o escondido, negado, porém real desejo de morte e de desgraça do ser humano para com desconhecidos seres humanos. Éramos os palhaços do circo da existência. Levantei, tardei 2 ou 3 minutos pra ficar ereto, com um dedo apoiado na mesa pra sustentar meu desequilíbrio. Mirei, tracei uma reta imaginária no chão, fechei os olhos e corri na direção do jamanta com as duas mãos fechadas.
Quando abri os olhos vi uma luz vermelha. Néon, eu captei novamente a luz do lugar. Tentei fechar os olhos, mas senti dedos lutando comigo pra deixá-los abertos. E a luz vermelha entrando em meus olhos, vasculhando minha alma. Aceitei, abri os olhos, já não queria mais lutar. Foi quando tudo ficou branco. Uma mulher de olhos claros estava quase encima de mim dizendo que precisava me fazer algumas perguntas. Disse que ela podia fazer um milhão de perguntas se eu pudesse fazer apenas uma. Ela disse ok, claro.
_Onde estou? - perguntei.
_Hospital João XXIII. - ela respondeu.
Noites e noites em bares, ás vezes, não é como tentar apagar as estrelas quando se esta num parque mijando pro alto, meu caro.