Pele clara como a neve, olhos sagazes e vivos como os de uma corça. Os cabelos escuros, donos de uma vida própria, como se ondulantes com o vento de sua força interior. Ganha força própria seu brilho interior, sabe o que quer e apesar de ter sofrido muito, ainda pode se atirar ao mundo sem medo. Esse o seu segredo, saber se encontrar para poder ajudar a quem quer que seja. Não tem limite sua paixão pelo que faz e o faz sempre, sempre que a vejo.
--Como vai?
--Melhor agora que lhe vejo.
--Assim me deixa sem jeito.
--Que faço? Que posso fazer se morro de desejo?
Como desfazer um sentimento? Como guardar dentro de si um mundo, um vasto continente cheio de enormes vales, grandes oásis e lagoas sublimes? A sensação que tenho quando a vejo assim, sozinha, plena de si, com os olhos enormes fitando o meu rosto é de pura admiração. Não deixo de contar a ela o que se passa, ela sempre tem uma palavra que apóia, outra que levanta, a mão aveludada que traz consigo os carinhos que deveriam haver mas não se realizam na totalidade, apenas na intenção.
--Você está bem?
--Você sabe, não?
--Sei. Mas tudo passa, viu?
--Como passam as nuvens, como passa o dragão e sua fumaça pela avenida, como passa o rio seco da Amazónia...
--...E seus peixes mortos. Você já falou disto. Está se tornando repetitivo!
--Estou lhe enchendo?
--Em absoluto. Gosto de conversar com você, mas devia mudar o disco, só para variar um pouco.
Ela sabe de meus altos e baixos. Sabe que hoje posso estar aqui, em sua frente, tomando um drinque com ela, numa conversa sem sentido ou direção e noutro, correndo a céu aberto, no carro, no caminho do abismo para depois parar o carro, ligar para ela e propor que ela vá comigo a uma festa ou saia comigo para uma peça onde haverá a leitura de um texto de Antunes. Como é misteriosa a alma humana, como ela é misteriosa para mim, atrás de seu sorriso lindo, seus olhos que me mantém à distància ( não se aproxime!) e eu não sei realmente o que se passa, nem comigo, nem com ela.
--Melhor assim, não? Essa distància que você coloca nos torna seguros um do outro.
--Assim podemos falar barbaridades sem nos ofendermos mutuamente.
--Pensando bem, esta é a idéia!
Não que eu não a deseje. Óbvio que o pensamento perpassa minha razão, claro está que eu jamais poderia ficar perto dela sem sentir uma profunda dor, como fosse parte de mim que precisasse ser completada; Não que ela não opere uma revolução em todos os meus sentidos. Que posso fazer? Esconder isto de mim? Deixar meu braço adormecer enquanto o outro se move em direção ao vento? De que maneira posso evitar que ela cresça como uma onda cristalina em uma tarde assim em que eu e ela podemos vislumbrar o sol daqui do alto da Praça da Lapa?
--Conhecia esta praça?
--Ele me falava dela; nunca me trouxe aqui.
--Nem com as crianças?
--Nem.
Seus olhos se turvavam nessas horas e eu sabia, havia tocado na ferida. De novo.
--Desculpe.
--Não é sua culpa. É dele que nunca me trouxe sempre envolvido com seu trabalho e... Outras coisas, você sabe.
--Sei. Bem que tentei alertar. Mas nunca pude chegar perto! Não me sentia com autoridade para isto!
--Agora, você tem. Sempre que precisar de um conselho, eu pedirei a você.
--Bem sabe o que sinto.
Seus olhos me fitavam e deles brotava aquela luz, aquela que me envolve numa nuvem de calor e carinho e que faz suas amigas a adorarem, aquela que revigora a alma até do mais sarcástico dos seres. Ela tem esse poder, de transmutar instantaneamente toda amargura em suave reverberação. Até mesmo a declaração mais embevecida ganha ares de gracejo e tudo o que posso fazer então é sorrir de volta, pegar o copo, sorver a bebida lentamente, fitando sua pele alva, branca, o rubor que toma suas faces, o olhar rápido que ela dá ao relógio como a lembrar que tem compromissos que eu já não tenho.
--Já é tarde.
--Precisa ir mesmo?
--Tenho de pegar a menor na escola. Ela faz questão de me contar das provas que fez; parece que foi bem.
--Se ela for como você, nada lhe resistirá.
--Você me acha tanto assim? Como pode dizer assim tantas coisas de mim? Você nunca sequer ficou comigo, parece adivinhar algo de mim que eu mesmo já não sei.
--Você é transparente quando quer ser e gosta de ser assim comigo. Adoro isto e você sabe disto.
--Sei.
--Então, aí você lança no ar essas suas qualidades, esse seu perfume, essas maravilhosas asas que lhe caem bem e simplesmente eu leio seus pensamentos mais secretos. Porém, há uma parte de você que eu não leio e que está bloqueada.
--Vamos dar tempo ao tempo. Tudo se arremata, tudo se resolve.
--Tudo se deslinda.
O sorriso, as famosas covinhas, as sardas se movimentando com a graça de pequenas ilhas, o suave jeito de colocar os cabelos de lado, assim ela me mata, assim ela me deixa confuso, ela é desta maneira, de um lado ousada, de outro recatada. Tudo se completa nela, tudo se arredonda em sua presença.
--Você é simplesmente linda.
--Obrigada!
Ela se levanta; dá-me um beijo na face, sua mão pousa na minha e ela se afasta. Não, ela não se afasta, tanto que meu copo permanece suspenso no ar, enquanto seu vulto esguio, esperto, se deixa tocar pela suave brisa lá de fora, Ã luz do sol que colore as roupas dela de uma estranha transparência e eu apenas adivinho o que há em seu contorno.
Eu entorno o copo. O drinque cai como uma luva. Vi seu aceno, marcamos mais um encontro, suas mãos são longas e suas unhas são marcas de uma leoa em formação. Alguém olha de longe, eu sei que é ela. Nada tão romàntico, apenas esqueceu um detalhe: As chaves de seu carro estão comigo. Terá que buscá-las mais cedo ou mais tarde, sei que não gostará da brincadeira, porém mais uma vez ralhará com sua voz aguda e depois, me dará outro beijo.