Seria uma burrice completa. Uma estúpida irresponsabilidade. Uma total falta de noção descrevê-la. Mas farei porque preciso, devo, necessito. Posso até ter uma cruel e dolorsa morte se isso ficar preso aqui dentro. Eu estava sentado numa mesa de bar, claro, descontraído, embriagado, naquela fase da bebedeira em que você não liga pra mais porra nenhuma. Dois corajosos amigos me acompanhavam há mais de sete horas mudando de bar a cada duas. Na mesa cerveja importada, torresmo e um copo de cachaça de qualidade duvidosa. Era aquele dia típico, normal, clássico. E deve ser por isso mesmo que aconteceu. Quando ela desceu do carro o mundo inteiro estremeceu, algo se fez presente, algo sublime, intenso e insistente. Cabelo desplicentemente preso, com algumas mechas soltas ao vento, seu rosto era de uma precisão suavemente estupefata, cada linha, cada expressão, absolutamente tudo era perfeitamente harmónico, olhos de um verde cristalino, fulminante, afiado como uma adaga, e o corpo repleto de curvas sonoras, divino e supremo, simplesmente além do compreensível. Ela não me viu e foi em direção a outro bar. Disse aos meus amigos que estava apaixonado. Eles não responderam porque estavam hipnotizados. Meu coração estava em festa, batia forte como há tempos não se via, fiquei ofegante, leve, senti ternura pelo mundo, queria salvar os oprimidos, tive vontade de votar na próxima eleição, queria ir pro Haiti ajudar no resgate de sobreviventes ao terremoto, queria montar uma ONG para proteger os dragões de Komodo, queria assinar o tratado de Kyoto, queria cantar uma música do Oswaldo Montenegro. Eu só queria mesmo era falar isso tudo pra ela. Levantei e fui em direção ao bar onde ela tinha se dirigido. Tomei um susto quando estava atravessando a rua e ela vinha em minha direção, ou melhor, em direção do seu carro que estava estacionado ao lado da minha mesa. Parei a sua frente e perguntei seu nome. Nesse momento ela me olhou seus olhos verdes de cristal e me fulminou, me cortou ao meio, atravessou minha carne, surrupiou minha alma, desarrumou as gavetas, e sorriu dizendo que não diria. Insisti - me diga seu nome, só isso - ela respondeu - não vou dizer não - sorrindo o riso mais brilhante e suave que já vi em toda minha vida, essa insignificante até aquele momento, até ela entrar na minha vida e fazer dela uma vida justificada, fazer todo sofrimento passado ter valido a pena só pra estar ali. Falei de novo - me dê um nome, qualquer um, invente se quiser - ela respondeu - pra que quer saber meu nome? - porque te amo - eu disse. Ela sorriu, mas dessa vez emitindo sons. Era o embrião, o girino de uma gargalhada. Seria um sinal de que tinha gostado? Seria o sinal do além de que, por fim, chegou minha hora e eu iria vingar na vida? Ela abiru a porta do carro, sentou, segurei a porta, agachei e disse olhando sua alucinada esfera verde que carregava um corpo - podemos nunca mais nos encontrarmos na vida, talvez agora seja nossa única chance - ela riu, disse que se fosse verdade iríamos nos encontrar de alguma maneira, e se não nos encontrássemos nunca mais era porque eu tinha mentido. Merda, odeio essas teorias hippies de conspiração do universo, de destino. Paulo Coelho e sua peregrinação de merda que se fodam. Foda-se as frases feitas decoradas do Maktub e ditas em momentos oportunos mas que não dizem porra nenhuma. Ela fechou a porta e se foi pra sempre. Sentei na mesa e virei o copo de pinga que estava ali dando sopa. Um dos meus amigos me deu parabéns pela coragem. O outro pousou sua mão em meu ombro, fez uma cara de resignação e disse olhando fixamente em meus olhos: _meu camarada, nunca você pegaria uma mulher dessa. Eu só respondi que se Paulo Coelho não existisse eu teria alguma chance. Um olhou pro outro e fizeram aquela cara de - QUÊ?
Segui trabalhando na cerveja, no torresmo e na pior cachaça do mundo enquanto meus dois amigos foram na rua de trás fumar maconha. Fiquei sozinho na mesa, esquecido pelos amigos, pelos amores antigos, pela minha mãe, por ela, assoviando baixinho Cordas de Aço, enquanto o mundo inteiro, assim como meu coração, desmoronavam bem em frente aos meus olhos.