Céu de Outono, de brigadeiro, na noite ventosa de maio. Dia do trabalho, raciocina o cão, rumina o homem, seu dono, caminhando pela rua batida por brisas fortes e com os rumores dos passos do sono acumulado da metrópole. Só de olhar para cima, ele o vê, lento pelo calçamento, tropeçando à s vezes em alguma quina (pragueja silencioso) e pacientemente espera que ele se recomponha na marcha diuturna.
Para onde eles vão, nem ele sabe, talvez nem deus saiba, porque deus, raciocina o cão com sua mentalidade canina, talvez esteja ocupado com missões mais importantes, como fazer apagar as estrelas do céu ou acender as fornalhas de uma galáxia de luzes. Ou talvez ocupado demais com os amigos de seu companheiro de marcha, os colegas de seu dono, silenciosos como ele e sem rumo igualmente.
Dia de trabalho árduo, focinhar nas lixeiras à cata de comida enquanto ele procura plásticos, madeira, papel, pedaços de metal, latas recicláveis, garrafas de refrigerante. Tudo isto ele aprendeu rapidamente e a tal ponto que chegava a apontar esperto as sobras que restavam do festim dos ricos; inútil, seu dono sempre de olhar mortiço, só tem olhos para cima, nunca se digna a ouvir seus lamentos e vez em quando, sobra um chute que mais ágil ainda ele evita, sábio que é desde a última vez que levou um.
Caminhar, caminhar, caminhar; pernas doloridas, a pausa vem de tarde, no início da algazarra das crianças que saem da escola e ele sabe que sempre sobra alguma coisa nas esquinas, um carinho bem feito ou uma salsicha que escorrega de um sanduíche descuidado, ele olha para cima, seu dono sempre sonolento, o chapéu enterrado no cocuruto, a barba piolhenta, o murmúrio entre dentes e a praga sibilante, como se o mundo fosse culpado, como se deus se importasse.
Se deus se importasse, ele sabe que estaria numa cama quente, cercado de crianças que puxariam seus pelos, perto da lareira, na quietude de uma casa cheia de humores da manhã, desde a urina do patrão ao esmegma da empregadinha excitada, do café fresco da patroa ao vómito azedo do bebê novinho, ah, e ele teria um ossinho de couro para roer, mas não, seu destino é sofrer no vento ruinoso de maio, na rua poeirenta, ao lado de um soturno caminhante. Dia de duro trabalho e de repescagem. Num céu de brigadeiro que se recompõe num segundo, depois da brisa e do vento gelado, no olhar de um deus gelado que cada vez mais se importa menos com seus filhos.
Olhar para cima é um risco pois de esguelha, se ele o vê chorando ou de focinho apontado, vem o trovão:
--Que é, guaipeca? Está mijando?
E tome pontapé. Ele, fiel, pensa em amputar o pé que o agride e repensa no Outono, em deus que se refestela em sua fornalha atrás das nuvens, nas crianças que um dia o expulsaram do paraíso, na rua de calçamento que ele percorre com seu novo companheiro, ele pensa e na sua mentalidade canina, perdoa deus por sua indiferença, perdoa os meninos por sua crueldade, perdoa a perna que o atinge nas costelas, perdoa o vento que gela a espinha e vai em frente, caminhando. Porque tem de refocilar, tem e remexer as entranhas da riqueza, tem de comer o osso de cada dia, aprendeu a sobreviver nas esquinas do sonho que teceu antes e apurou nas andanças incansáveis de seu dono e ele volta, mesmo ganindo de dor, Ã proximidade da sinistra figura que sibila, entre os poucos dentes de sua boca torta e fedida:
--Cachorro pulguento. Qualquer dia destes vira sabão. Te esconjuro!
Será que existe um deus que a tudo vê ou assiste passivo ao espetáculo, tomando seu vinho e palitando os dentes com os raios que engendra nas tempestades? Porque se ele existisse, será que justiça haveria, ele fuçaria nos monturos e retiraria pepitas de ouro para seu mesquinho companheiro se orgulhar dele? Ou será que ele viveria numa almofada de tão leve que flutuaria, acima do tempo, acima das nuvens que ele percorreria, ladrando atrás das pernas das anjinhas brincalhonas?
--Peste...Vira-lata!
Lá vão eles de novo. Caminhar, caminhar, sem um rumo definido, as calças dele esfiapadas, dá para ver a bunda de baixo, o ruminar silencioso, o cigarrinho pendendo da boca pestilenta.