--Bom dia! Num sorriso como o seu, dentifrício Sustentol: Você escova os dentes e nutre gengivas, língua e pálato e aproveita e faz uma dieta saudável.
--Bom Dia, saco.
--Não fale assim. Sorrir logo pela manhã movimenta milhares de músculos. Faz bem à sua saúde mental. Sorrir traz irrigação aos músculos da face; aumenta a produção de endorfinas. Vitaliza os tecidos do couro cabeludo, pescoço e mobiliza a secreção de hormônios vitais.
--Sei, sei.
--Noto um quê de desânimo em sua voz.
--Nota mais o quê?
--Pelo espelho, posso notar que andou se coçando. Talvez não tenha tomado direito as vitaminas. Hora do banho.
--Precisava lembrar?
Liga o chuveiro automaticamente. Eu tornei o controle dele mais dificil, de modo que sempre o vapor nubla os vidros do box e não sou visto. Da última vez que me viu, essa...coisa andou comentando sobre minhas nádegas gordas. Como mandar um servomecanismo tomar...
--Água muito quente!
--Ué, não é você que fala dos músculos faciais?
--...Se ainda sobrar algo depois dessa fornalha atômica, você sai dessa mais assado que lombo de porco.
Não é que ele estava aprendendo? Quando eu comprei o apartamento, ele tinha uma voz anódina, metálica. Eu o modulo dia a dia e ele agora dá de falar essas tiradas geniais. No entanto, abusou ao falar de minha bunda gorda. Aí foi demais, ralhei com ele e por dois dias eu não ouvi sua voz; magoei o monstro, pelo menos por ora.
--Pode sair dessa bruma enevoada? Não sou capitão de um navio do Triângulo de Bermudas.
--Você podia ser um pouco mais paciente.
--Preciso monitorar seu estado de saúde! Afinal, sou feito para isso.
--Precisa é de uma bela escrava mecânica.
--Não compreendo.
--Aprende rápido, você.
Assim que saio, um exaustor se liga e o vapor se dissipa, mas ele não consegue ver minhas partes íntimas; obviamente não comenta sobre isso.
--Café?
--Oh, sim, Charles. Café com torradas. Bacon. Ovos. Um pouco de torresmo. Ah, e batatas fritas.
--Sou um servomecanismo. Ainda não aprendi a fabricar lixo.
à mesa, ergo a pequena tela fina onde correm as noticias. Bolsa, guerras fratricidas, atentados em uma África Qualquer, uma inundação no Sri Lanka. Tomo ruidosamente a xícara de café árabe, de sabor consistente e aroma inigualável. Claro, não posso exagerar, mesmo um homem solteiro tem lá suas limitações. Eu vou falar mas Charles tem senso e antecipa minhas emoções e pedidos(às vezes acho que lê pensamentos) e a janela eletrônica se abre ao lado, exibindo um sol tímido, em meio às nuvens de cinza chumbo de uma tempestade próxima.
--Oh, não. Chuva de novo!
--A previsão dá como certo.
--Se chove, chove demais. Se seca, seca demais.
--São tempos de contrastes, senhor.
--Diga-me, em seu banco de dados, você pode me dizer onde fica o coração de Deus?
--Essa pergunta não se encaixa. Mas podemos começar pela própria palavra, Deus. Aquele que é todo poderoso. Pelo que consta, não há registros de sua presença no mundo. Pelo que eu posso depreender, Deus é mais uma criação fútil de nossa mente.
--...Nossa?
--Bem, a mente que me criou e que gerencia todas as mentes iguais à minha; não foi um Deus, mas foram seres como você.
--Mas, veja. Você não diz que Deus existe. No entanto, está em todos os lugares (é portanto onipresente); Pelo que sei, não morre jamais, existiram quantos donos antes de mim aqui?
--Doze seguidos.
--...Portanto, vocês são imortais.
--Prossiga.
--Pelo que sei, tem poderes que podem rivalizar aos da possível deidade. É portanto Onipotente. E está em vários lugares, dividindo o mundo com outros iguais, onisciente de nossos desejos.
--Realmente.
--Portanto, você é Deus.
--Sou uma máquina...
Será que notei um tom de irritação em sua voz? Talvez um som anasalado, um estalido inusitado?
--Preparo o carro?
--Por obséquio, máquina.
--Sou Charles. Você sabe meu nome.
--Desculpe, sou mal-educado.
--Sei disso.
A garagem se abre, descortina-se a paisagem. Árvores plenas de folhas, batidas ao vento frio da manhã outonal. Algumas folhas já caem, enchendo os cantos da casa(certamente ele já providenciou os pequenos aspiradores que somem com as sujeiras antes de elas me incomodarem)
--Devo lembrar-lhe que hoje em dia, dirigir no manual é arriscado, dadas as velocidades.
--Deixe-me só.
--Como quiser.
O caminho, batido por ventos que chegavam em grandes lufadas, refletia o sol. Nas ruas, ninguém mais. Num canto de um quintal um balanço inútil. Na outra, uma roupa abandonada secava num varal improvável. Todos ainda dormiam. Não havia viva alma, ninguém correndo como nos velhos tempos; na praça, nenhum idoso jogando dominó, todos já estavam descansando no Eterno. Numa visão de um luzir do sol, acreditei ter visto uma ave; as aves proliferavam em bandos por ali.
Foi quando ele me ligou, desobedecendo minhas ordens.
--Está tudo bem por aí?
Desconcertado, já pensava em dar minhas famosas respostas. No entanto...
--Sabe, pensei no que disse.
--Sobre o que Charles?
--Sobre Deus, eternidade, essas coisas...Sabe?
--Sim?
--Acho que tem razão.
Pareceu a mim que o carro girava lentamente; o viaduto agora estava cheio de carros enlouquecidos; Deus os controlava.
--Aprende rápido, você. |