Era só acordar e ouvir o lento, monótono arrastar sobre o meu quarto e eu podia imaginar o braço da pequena empregada que varria o chão do apartamento de cima. A vassoura corria preguiçosa pelos cantos, levando poeira e cabelos dourados a toda parte, um dos quais voeja por ali( eu posso deixar a janela aberta e um fio de ouro vai pousar sobre meu peito). Voar era o esporte preferido, o dela. O meu era ficar ali, esperando o vôo do cabelo dourado, pegá-lo no ar e imaginar a dona dele, o emaranhado e seus olhos imensos num ar de desacordo, um permanente zombar de si mesma--o que sempre me atraiu nela, o sorriso permanente em seus lábios e olhos de corça inquisidores...
O filete de luz entra pela janela, face sul, do que prometeram essa é a melhor parte, a luz que delineia os vultos e os rostos. Rembrandt não faria melhor, isto se eu soubesse pintar como ele, ou se soubesse definir o que há de sombra e luz em mim mais do que ele em suas telas expressivas...O fio de ouro se foi, nem consegui abraçá-lo, nem à dona, nem a mim. Lá se foi o dourado, ela mais uma vez sonha sobre as nuvens. Nesta altura, deve estar a dez mil pés contemplando os vultos do horizonte em uma noite que não tem mais fim, essa tal que vive para sempre aos holofotes, lá vai num vôo sobre campos de algodão, de mãos dadas ao destino... Eu sei de mim.
Caminho até a porta de serviço e sob a passadeira, várias correspondências. Contas, uma revista de arte, capa de Van Gogh, outra conta, um envelope de um lançamento de imóvel; negócio único! Outra conta. Não sei quem disse que viver é pagar a conta do imponderável. Um envelope de papel descartável. Perfumado. Um envelope perfumado sob o tapete da porta de serviço do meu apartamento. Muito romântico! Resta saber quem mandou.
'Você, você. Sempre você. Nesta altura, se receber esta carta e não rasgar, saberá de mim. Nega-me sempre, sabe de tudo o que sou, sabe de meus segredos. Tem um passaporte para meu coração, Mas não, prefere a solidão deste apartamento, aí, onde só uma faixa de luz lhe tosta o rosto. Capaz de ficar uma tarde toda olhando a luz banhar sua clepsidra no meio da sala, para ver as horas passarem e escorrerem entre seus dedos. Capaz de olhar para fora e ver o passarinho se esgoelando de pedir água para um banho que encherá de cristais o parapeito de sua sacada. Capaz de se perguntar se não o preferia assado, mas conheço seu coração, vai lá e põe água! (Vou lá e ponho água, ela sempre me adivinha os passos). 'Ai, você, você. Velhas rugas, novos tempos. Não posso ficar presa, você sabe. Detesto, me sufoca, tenho claustrofobia, já tratei e você insiste em deixar as janelas de sua alma fechadas. Defendendo-se de quê? O mundo já não lhe provou que é algo mais que ficar lendo suas fontes? Sou diferente. Sou impermanente, meu sorriso abarca o mundo. Meus olhos desejam o sonho!' (eu vejo o fio dourado que ela prendeu ao cartão, sinto o perfume de seu corpo, sinto a dor da saudade e a espera que começará exatamente agora, quando ela se ajeita no travesseiro e manda um beijo por telepatia). 'Enfim, você sabe mais de mim do que eu mesma. Agora viajarei por uns tempos. Tenho amigos em Aruba, ilha de sonhos. Quero curtir um porre, quero flutuar no abismo, quero ser tragada por um gozo enorme, seu danado. Mas eu não quero ser um brinquedo, uma boneca inútil. Dando um tempo, veremos. Até mais. Beijos, Alinne.'
Beijos, Alinne. Mas quer saber? Esta carta já tem anos. Eu a recebi há tempos atrás, eu peço ao carteiro para que a entregue sempre de novo, só para guardar a sensação de que a sei inteira, de cor, salteada, até as nervuras do papel amarelado que ela soube escolher porque encharcou de sua essência, que permanece até hoje, uma loção de Alinne, um perfume de mulher etérea, uma florada absurda em um platô de uma diamantina, essa é a minha menina. Dada a sair voando por aí, uma vez saltou do alto de um prédio, só para me convencer de minha própria loucura, essa é a minha descontente. Eu não pude fazer nada, só rir quando ela chegou descabelada, enchendo a sala de luz e sombra, Rembrandt de dourada mecha...Só para cairmos ali mesmo, seus olhos a me dovorarem inquisidores, enormes, afoitos, e eu me perder em suas entranhas, ó criatura.
Alguém põe mais uma carta. Lenta e subreptícia, entra o envelope. O perfume já deixou sua marca. Papel marrom, envelope encharcado. É ela, que de viagem, não fêz nada, foi é se embbriagar de solidão, numa chapada estranha, ali na praça do meio dia. E voltou para mim, cada vez mais convencida de que, se não sou perfeito, ainda guardo um pouco de mim nela.
Olho pelo olho mágico e o que vejo, dois olhos mágicos de amor.
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