Eu andava nas ruas, lentamente, sem compromisso de ir a tal ou qual lugar. Eu merecia, primeiro dia, eu sempre faço isso. Pego o meu boné (isso existe ainda) e passeio solto nas grandes avenidas, que são como as artérias do mundo. Nelas se principia tudo: Um menino cheira rapé, outro dorme a sono solto, outro ainda vende cachimbos e o velhinho, insistente, teima em ficar de pé, até porque o resto de sua vida se foi. Ele é uma paródia enquanto eu, eu sou um pó de mim mesmo, eu sou a ralé das catacumbas que resiste e assoma à superfície, eu sou o rei da dança das sombras. Sabe:um vendaval bate furioso e a árvore precipita as manchas de luz contra escuro? Sou eu que agito os galhos, a ventarola. Então eu me esparramo no mundo, sim senhor. Volteio, ouço as músicas que escorrem das vitrines de lojas de discos antigos de vinil, corro os olhos pelos pequenos artigos de pequenas lojas de pequenos homens que articulam planos mirabolantes de ganhar rios de erva, eu vejo. Ninguém sabe, mas eu observo, eu praticamente sei da seiva toda que escorre das veias abertas desta marafona virgem que como eu volteia sobre as pernas bambas de fuligem, de soma, de álcool empedernido. Eu sou um abismo em chamas, penso eu, enquanto corcoveia o carro de latas penduradas e uma placa que se não é a mais estranha, passa por relíquia do dono cercado de cachorros que o olham famintos. O pobre homem solta um berro, chuta o ar e quase atinge seu protetor de quatro patas; os outros mais espertos fugiram.
--É o troco! Vou dar o troco. Mané! Mané!
...E zil outras tolices saem da sua boca e minha marcha continua, pois assim caminha a fraternidade. Sou totalmente irmão desse destemido de calças sujas, sinto que a sua sandice se aproxima de toda essa sobriedade dos edifícios que cheiram a mijo, paredes pichadas. Não disse? Também dou o troco porque ninguém jamais se esquece de uma promessa e eu prometi, já estou andando de novo e num relance, mais meninos doidos de pedra numa esquina medonha, dormem todos em pé porque deitados não podem.
--Mané!
A voz do carreteiro vai fugaz, estoura feito ondas bravias em ecos que remexem no sonho da tarde. As madames se esforçam, eu sei como se danam essas mulheres de rapina; umas olham os espelhos, outras se perfumam. Mais algumas conversam trivialidades, outras caminham de sol a sol. Eu coxeio, ainda ontem dei um entorse, foi-se o joelho. Só ouvi o estralo e depois ainda dizem, ficar velho é o destino de todos. Pois sim: Troco minha tola virtude por metade de meus anos. Se assim fosse, estaria a quilometros...Mas continuo a subida, quero ir à Catedral, onde as chinas rezam antes de bambolear, onde os falsos se entregam à rotina e onde os padres se amotinam vez em quando. Tanto faz, não faz a mínima diferença, só mesmo aquele olhar é o que importa, o olhar da carola que me escrutina. Ela sabe que mesmo através desta barba, desses olhos que a cobrem de fogo, esses olhos têm por trás uma alma triste que cansada, vagueia, Luta. Chuta latas e...caminha.
Você se pergunta, então. Qual o sentido disso tudo? Não sei, não senhor. Sei que apesar disso que se vê, dessa obscenidade toda, dessa malquerença toda, essa gosma no meio fio, é assim que é. Tem os que têm as carnes absolutas: São os donos do poder, meu irmão. Esses jateiam a prata, andam de fina estampa, comem do melhor queijo e cheiram melhor que a propina. Tem os outros de quem se aproxima a laia. Somo nós, somos eu e você, é o carroceiro, é a pobre coitada. Porém há os homens que não se importam com nada: A eles é dada a origem certa de tudo, porque a eles não se deve mexer. são coisa pouca, também da raia miúda. Mas esses, ah, esses eu nem penso em bulir. E tem os moços da paz e do perdão, que habitam lá em cima, perto da torre dos sinos da catedral. Então eles saem, ofuscados de tanta luz, enojados de tantos cheiros e ruídos, eles entornam um cálice, que jamais será pleno enquanto eles o tomarem, e meio de lado, como quem pragueja, levantam as mãos em sinal de pura maquinação, estalam os dedos e chove pão e sopa. Sim senhor. Você me desculpe a ingratidão, assim é meu jeito, sim senhor. Se a vida me fêz assim, e se não foi sua culpa, peço data vênia e vou em frente, que a mistura é boa e a patroa pode vir a gostar de tanta ausência, de tal forma que eu já ensaio meus passos de volta e faço o trajeto onde deixo as migalhas para que os mil pombos em suave arrulheira me cedam a necessária passagem.
--Amém.
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