--...E anote aí. Profissão, repórter de luxo.
--Kelly, já disse, não sou repórter.
--Para mim,é como se fosse.
Ela exibia unhas recém-pintadas com uma textura diferente, parecia um pergaminho. Eu notei e disse que era bonito.
--Notou hein? Esta história de que homem não nota nada é puro mito. Invenção mesmo.
--Eu sempre achei isto. Só não notamos tudo o que notam. Tem nuances de cor, cabelos, às vezes um enfeite...Somos cegos. Deve ser algo visceral, cerebral.
--Também, é como diz o filósofo, se você não sabe o que procura, não tem como interpretar o que acha. Mais ou menos isso?
--Creio que sim, Kant.
--Kelly, prazer.
As risadas da moça enchem a sala. Ela deu de criar peças de crochê, que vende a preços absurdos para os clientes que ela chama de vips. Estes compram o que ela quiser.
--Devia ser dona de alguma loja, você ia vender até caixinha de surpresa!
--Não, isso eu deixo para o futebol, que vocês sempre falam isso nos jornais. De minha parte, vendo outra parte, a que me interessa. E se está bom para todas as partes...
--Verdade. Conte mais alguma?
--...Lápis?
--...Na mão.
"Eu já lhe contei sobre a paixão que eu tive com um dono de duas pernas fenomenais, mas que não sabia o Mito da Caverna. Burrice comigo dá nó. É como você chegar perto de uma estátua linda, daqueles torsos gregos nus, toda de mármore e vai olhar de frente...Coitados dos gregos, eram bem pouco digamos, aquinhoados. Ou aquilo se fazia para disfarçar o dito cujo e salvaguardar o restante da estrutura, você me entende."
"Sei que o camarada era muito inteligente. Eu vivia frequentando uma livraria ali no conjunto Nacional, sabe, até um pouco antes do camarada ser morto por um taco de beisebol, lembra? Bem, eu nunca mais fui depois disso, a livraria é ótima, tem muitos ambientes, bem nutrida de livros e tinha um atendente lá que era muito especial. O camarada não era um bonito, era simpático. Sabe quando o cara é gordo e você o chama de forte? Pois é, ele não era bonito, era simpático. Quando eu aparecia por lá, ele se desmanchava em Proust, se declarava fã de Dostoievsky,carregava nas cores de autores latinos e amava cinema. Não dá para ser indiferente a um camarada que sabe tanto, que curte o que fala...então eu comprava os livros que ele recomendava. Não é que tinha umas indicações boas? Se comecei a ler mais, foi por estímulo de Rômulo, o Simpático."
" Uma tarde, particularmente chuvosa, passei como de hábito a caminho de casa; a noite havia sido algo proveitosa. Lá estava o mancebo, olhos acesos, esperando que eu o chamasse, já com dois livros nas mãos...Chamei-o e ele se aproximou."
--Jovem literato, o que hoje me indicas?
--Ó suave musa, sabereis já, pois sois a razão de meu sopro, sois a ventura de meus dias!
Olhei o gajo de cima a baixo. Estaria alto? Haveria alguma substância proibida no ar de setembro que eu não conhecesse? Resolvi entrar no jogo.
--Pois vós sois um belo mancebo, que Zeus aquinhoou com o brilho da inteligência, mais do que o belo traço da Natureza.
--E vós sois a mais linda e diáfana musa, que povoa minhas noites delirantes de paixão com as mais finas fantasias.
--Que recomendas, ó suave rapaz?
Ele me colocou dois livros em mãos que, sem serem escandalosos, tinham mensagens subliminares mais do que evidentes. Claro que sim, eu disse, e foi dos mais doces camaradas com quem eu convivi, dos melhores amantes que eu tive, dos mais apaixonados. Ainda nos encontramos pois, como você bem sabe, adoro ler."
Sobre a mesa de centro, discreto, ao lado do copo indefectível com gin tônica, uma capa vermelha e preta, duas figuras eram uma só. Naquele dia a entrevista terminou mais cedo.
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