Não me tornei assim ao acaso. Não julguem a aparência pela capa; vejo minhas fotos, talvez uma pinceladinha aqui, um retoque acolá. Sim, a idade derruba pontos nevrálgicos, estratégicos. Não me lembro de como comecei a escrever esta crônica. O que vem atrás, simplesmente apaguei. Nem tenho ideia do que é este barulho ensurdecedor, que se parece com um rotor de helicóptero batendo. Não me tornei um anacrônico por acaso, nem me tornei um eremita por opção. Tenho o carinho de minha mulher, de minhas filhas, tenho certeza de que se escrevi isto até agora, ainda não me esqueci de mim mesmo, apesar do bater das asas abertas do luminoso som, a majestosa sonoridade da Oitava de Mahler, enchendo meus ouvidos com sua beleza pujante. Quem sou eu que já me esqueço de mim, apenas batendo as teclas assim, com fraca respiração?
Não me tornei assim ao acaso, saibam vocês todos, que pensam que fazem de tudo, a sonoridade da Oitava me carrega ao Paraíso proposto pelo autor. Tenho a vida pra viver em sonhos, tenho a realidade impertinente num gole de vozes luminosas, posso pensar que o sonho é minha substância, assim como as ondas sonoras se enfeixam criando nuvens de cor e de amor, paixão, eu sei que nunca chegaria lá sozinho....Hipnótico louvor aos semidesmaios musicais, como as notas de um Debussy ou Ravel...Hipnótico trem das baladas nas janelas timbradas, do Deus e amanhã...
Não cheguei até aqui sozinho, foram muitos dias, vidas vividas como membranas, noites de puro casuísmo, dedicação e sofrimento. Ou vocês acham que o mundo é êxtase e delírio? Acham que se faz um homem de uma criança sem preço algum? A Vida cobra segredos, é isto que é. Hipnóticos olhos. Ah, os olhos, sempre as janelas, as fulgurantes janelas da alma. Sempre soube lê-las, sem saber muito o que fazer com tanta tristeza, tanta alegria, tanto amor...Sempre estive um passo além de minhas leituras. A um segundo de virar um segredo. Não cheguei até aqui sozinho, eu e muitos eus se superpuseram, de modo que o que aqui vos fala é uma parte de mim, a parte que sofre sem a distância devida, a parte que se magoa, mas também a parte que hipnotiza e segrega uma nuvem de luz em torno de todos os que conhece, sem pedir nada em troca. Juro. Por todo hipnótico que é sagrado.
Certa vez, em meio a uma noite, fui chamado a depor diante de um tribunal de contas. Achei que havia chegado minha hora, eu estava mais leve, talvez o hipnótico momento tenha sido exagerado, eu me descobri subindo os degraus de uma escadaria de sonhos. Lá estava um senhor, de posse de um livro etéreo, e ainda me mandou sentar.
--Senta-te, criança.
Veio-me à mente toda esta história de infância, as noites debaixo dos lençóis, o fogo da lua ardendo na janela, veio-me a lembrança da primavera e de minha primeira vertigem, meu primeiro amor. No entanto, o Livro estava lá e o grande homem me disse, ralhando.
--Mandei ficar sentado. Tens formiga no traseiro?
Sempre fui inquieto, olhando aquele cristal multicolorido, qual globo incandescente, fiquei hipnotizado. Sempre tive fama de tinhoso.Em festas de família, quando eu chegava, minha fama me antecedia e tudo que era quebrável sumia. Ali não foi diferente. Notei no semblante do Homem um certo desassossego.
--Muito bem. Vais voltar rapidamente. Largue este globo, se ele cair será o Apocalipse lá embaixo, se bem que ele está quase caido, mesmo. Mas vá lá, volte e cuide bem dos outros, que de ti sabes cuidar bem!
...E acordei caído no tapete. Pensam que vou falar isto a ela? Ninguém sabe, só eu. Levantei, arrumei o tapete que tinha ficado amarfanhado em um canto, desliguei as luzes e fui para o quarto. Senti o calor dela, sempre me puxando para si. Respirei fundo.
--Que foi?
--Nada.
--Engraçado. Também achei isto.
--Pois é...
--Aquilo ali é seu?
Sobre a pia do banheiro, equilibrando-se sobre um fio invisível, pulsava um globo de cristal, talvez presente de um certo anjo.
--Peguei emprestado. Você cuida? Sou meio desastrado. Não deixe cair.
--Durma. Amanhã você pega cedo. |