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Cronicas-->Doente Imaginário -- 23/01/2013 - 12:41 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Certamente vários de vocês já depararam com situações como esta que vou descrever. Num grande Hospital que conheci havia até um local determinado para este tipo de paciente. Você tem a impressão de que tudo, absolutamente tudo que existe num compêndio, existe naquela pessoa. Tal um vórtice de água, como um redemoinho, a pessoa se apresenta de maneira por vezes espalhafatosa, querendo passar à frente de todos os outros, gritando alto, porque ele é o mais urgente; imagine ficar esperando os outros? A queixa dele tem de ser a mais importante. Lá vai você, depois de chamar várias pessoas (algumas das quais realmente estão doentes, outras nem tanto...) e depara com a ficha dela, Dona Joana. Chamo pelo nome, entra aquela senhora com ar pesado, uma boca parecendo aquelas máscaras japonesas, cheia de suspiros.
--Olá, dona Joana!
--Oi, seu doutor.
--Em que posso ajudar?
--Olhe, começa com uma dor aqui, bem em cima do couro cabeludo...
...E quando você vê, a dor migrou para diversas áreas do corpo. Da ponta do cabelo às unhas dos pés, ela tem queixas. Na verdade, sua existência é uma queixa. Tudo tem um quê de sombrio, tudo tem uma conotação acinzentada. Lembro-me de certa vez, atendendo em um ambulatório há muitos anos atrás, de ver sempre entrar um carro de luxo--um Mercedes-Benz--com chofer e tudo e de lá descia um distinto senhor que passava sempre na mesma hora, com diferentes médicos. Todos os dias, na mesma hora. Milimétrico. Nunca faltava, mas sempre era com um médico diferente. Até que passou comigo, eu doido para saber o que ele queria dizer. "Pois não?" "Doutor, eu só quero que o senhor me responda uma coisa" "Pois não?" "Vou morrer ou não? "Mas por qual razão você morreria?" "Sinto, toda manhã, que se não vier aqui e fizer o exame de eletro, morrerei...". Eu era um iniciante. No entanto, acho que bom senso, tato, se deve ter sempre. O moço tinha ótima saúde, via-se que tinha uma vida boa; trabalhava, tinha posses; só que era um prisioneiro de si mesmo! Que ritual era esse que o obrigava a ir, todo santo dia, ao médico? Com cuidado, ao examiná-lo, vi as características do distúrbio do pànico. Ele as descrevia minucioso, a boca seca, a tontura, a dor no peito...a sensação de morte iminente. Daí a procura ao médico. Indiquei a ele um psiquiatra. Ele sumiu, achei que o tinha ofendido(muitas pessoas preferem ver o diabo ao psiquiatra). Dois meses depois chegou uma caixa de champanhe das boas para todos nós da Unidade Nove de Julho e uma carta agradecendo nossa paciência e atenção.
"A depressão grave revela-se um problema de saúde pública em todas as regiões do mundo e tem ligações com as condições sociais em alguns países". Essa é conclusão do relatório sobre o transtorno feito pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em 18 países, de alta e de baixa renda, incluindo o Brasil. Junto com a depressão, vêm os diversos distúrbios, o pànico, a fobia por lugares abertos, por lugares fechados. Você sabe um furacão? Ele é precedido por tempestades, ventanias, chuvas torrenciais...E tudo isso às vezes mascarado pela personalidade do doente, com diferentes matizes de somatização . Dona Joana, coitada, sente dor em todos os locais. Vai daí que se o médico não tiver paciência e/ou tempo para ouvir, cortará as queixas pela metade ou, pior, medicalizará o paciente no PA; Isto tirará sua ansiedade e paliativamente sedará o doente, para depois reforçar um comportamento que beira a dependência, criando um círculo vicioso de desatenção e eventualmente desprezo para pacientes deste tipo. "Ih, lá vem a dona que dói até o cabelo" "Ih, olha essa aqui. Dor nas juntas, dor nos braços, dor na alma". Eu pergunto, alguém aqui já teve dor na alma? Haverá dor mais terrível? Custaria dar um pouco de atenção, e não derrapar o doente para a "desprezoterapia" que era o lugar para onde iam as pessoas que chegavam assim em determinados locais onde eu trabalhei? Porque desprezar uma queixa que não tem nada a ver com o corpo, mas tem tudo a ver com o corpo/alma?
Balint, em seu famoso livro "O Médico, o Paciente e sua Doença" cita que o médico pode ser um medicamento, se souber ouvir seus doentes; este medicamento pode ter efeitos benéficos (efeito Placebo) assim como maléficos (efeito Nocebo). O que fazer então com um paciente poliqueixoso? Na medida do possível, deixar fluir suas queixas, para que o jorro se faça benéfico. Também não ficar balançando a cabeça em tom de reprovação: Em quê isso ajuda alguém? Deixei dona Joana falar muita coisa, mas sempre pontuando que ali não era o local adequado. Quando lhe falei que devia procurar um médico de saúde mental, veio a clássica pergunta dela:
--Mas o senhor acha que sou louco?
Mais um preconceito. A população precisa ser educada a respeito. 32% da população mundial sofre de depressão ou de seus corolários, tipo insónia, irritabilidade, impotência, mau rendimento no trabalho, relacionamentos ruins em casa...Ninguém quer saber de se tratar, ou existe uma enorme rede que cerca estas pessoas de um silencioso isolamento que os conduz a cada vez mais precisarem de médicos que nada poderão fazer por sua melhora?
--Dona Joana, a senhora não é louca. Se fosse, não estaria falando comigo, aqui, agora. Estaria em outro lugar. A senhora tem depressão. Precisa se tratar; que trata de depressão é o psiquiatra, se bem que nós clínicos também podemos iniciar o tratamento. O problema é que posso nunca mais vê-la, de modo que perco o seu seguimento... E lá foi dona Joana com sua guia. E marcou o tal médico "de cabeça" e se tratou. E eu vi que há mais coisas entre a triagem e a Terra do que sonha a nossa vã "desprezoterapia".
Ah, em tempo: Dona Joana passou de novo aqui há alguns meses. Veio tratar de um problema "de pressão"e deu risadas boas, como há muito eu não ouvia em minha sala.
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