Sol, calor nos rostos, seco brilho no reboque do muro caiado, com tufos de grama teimosos e plantas impossíveis saindo das pedras do chão. Prenuncia-se um milagre, um pequeno flash de alguma realidade mais profunda, enquanto caminho na direção do nada, a cabeça sem nenhum pensamento notável. Engraçado que minha mais notável técnica de meditar seja essa espécie de vago olhar sem sentir, notar no pulsar do mundo o Vazio, como se esmeram em falar os mestres budistas e taoístas. Nada, o vazio, mais do que a massa escura que amalgama à força as galáxias, fazendo as vezes de invisíveis cordas que nem se entesam, já se pressente o rumor de Brahma.
Cães ladram solitários nos espaços de jardins cercados, de altos muros, enquanto meu andar se esvazia mais, e vem o pulso da divina mão em minha direção; começa com um arrasto, termina num sonho. O passo de seu lento agigantar-se mosqueia minha vista: no muro pichado se declara o amor à Kelly, a puta que luta, anuncia-se o elixir da loucura, a moeda de troca do Abismo. Ele espera, no mais, no sono sem sonhos do tijolo carcomido que dá vermelho ao pó do Outono. Cor da moda. E vem o passo de coragem do vulto que se define. A sombra se delineia na parede alta, com arrulhos de pombo acima e miasmas de açúcar por baixo. Guimbas. Megeras. "Tristonha antonha vovozinha amanha", e a coragem se aproxima. Manqueja o Tristão, sem sua Isolda, boca torta e a tal coragem na aragem da tarde suja, que cai com os megatons de sempre. "Nuvem de tu vem tumbem mulata". Vulgata.
Cai o pano, eu me viro e passa por mim quiçá o futuro, na muleta dos dias de antanho.