Sobre o campo recém-orvalhado, em meio aos ventos de primavera que saúdam os pássaros, repousa o nosso amigo que sonha deitado sobre uma pedra; ele sabe que o que vê não passa de um momento onírico, mas de sonhos se cria toda a matéria, de sonhos se destila a natureza do Homem, pois que o dele não difere muito dos de muitos que também imaginam. Ele vê uma escada por onde descem e sobem anjos, desses que vêm e vão e trazem as boas novas ao povo ou , de faces veladas, mandam-no voltar-se ao preço de transformar-se em sal, é o que dizem.
Ele olha acima, longe, onde se formam as nuvens de matéria muito sutil e que, em meio a furiosos ventos tomam formas bizarras, de anjos, de megeras, de rostos e de estranhos desejos que perpassam sua mente singela. Lá descem, carregando nas mãos turíbulos e ampulhetas; um deles tem à mão uma caneta dourada onde anota todos os tempos do mundo. Ele talvez seja o mais severo de todos os que se afastam das escadas enquanto, do alto, despeja-se a luz, sob forma de raios oblíquos e estranhos.
Eles sussurram e o olham de esguelha pois que , ele o sabe bem, talvez não fosse para estar ali, naquela hora em que dormia e eles assim o dizem:
--Quem sois?
--Um pobre servo vosso.
--Nós servimos a Deus.
Quem é essa criatura? Saberá esse que eles veneram todos os desejos, incólume em sua luz abençoada ou repousa ele na sua enormidade, inconsciente de sua própria grandeza. Trará esse Deus a vida eterna ou o que pode prometer, além do que ele vê, é o esquecimento e a escuridão? Não pode ser, ele o sabe, enquanto que a infindável caminhada de seres semidivinos permanece incessante, e ele vê a abelha que beija a maçã, os olhos de sua amada impressos em alguma bruma. Tudo isso ele vê.
--Nós servimos ao que tem todas as palavras.
Quantos serão os nomes de Deus? O que significam aqui, nessa terra desolada, onde só persistem as desilusões e os desencantos?
--Ouso perguntar, este humilde servo, se sabem onde ele se encontra?
Como um raio, todos se voltam a ele. Quanta insolência de um verme tal! Como ousa assim desferir, aqui, o estranho golpe da dúvida?
--Vós o sabeis!
E ele acorda, molhado de vertigem, pois que, em seu peito, repousa uma folha dourada.