Estou em meu habitat natural, como diz uma amiga que admira nosso trabalho; garimpar em meio ao mundo de gripes, dores de cabeça, resfriados e viroses é um trabalho árduo, mas vale a pena por nos deixar mais alertas ao invés de anestesiados pela rotina. Num hospital geral, o viés e a visão tem de ser a mais aberta possível. Tudo pode ocorrer, como uma dor muscular estranha ( entre as patelas) se transformar em uma emergência cardíaca, um provável resfriado virar pneumonia e um sonho vívido se tornar um pesadelo.
Chamo a paciente que entra com um olhar enviesado, como se procurasse algo que a alarmasse. Seu nome é Clarisse.
--O que a traz aqui, Dona Clarisse?
--O de sempre, que eu sei.
--O quê a senhora sabe que eu não sei?
--Eu sei.
...Silêncio, olhos injetados que procuram microfones ocultos, talvez uma certa aparência policialesca, os vigilantes de pesados ternos tais como espiões de Dilma e Obama. Todos são estranhos, a solidão de Clarisse se alarga e abrange o mundo que a engole como um ralo escuro.
--Dona Clarisse, eu não sei o que a senhora sabe; diga-me, talvez possa ajudar.
--O senhor pensa que eu não sei o que o senhor sabe? Sabe, que eu sei, que eles colocam coisas em minha comida. Colocam...Remédios, cacos de um tipo de vidro que parece gelatina, um vidro invisível que se aglutina e tem sabor de morango.
--Quem são eles?
--São os mesmos que espiam minhas fechaduras, onde moro sozinha. Pensa que eu não sei?
Respiro, a mulher precisa de ajuda e rápida. A pausa agora é minha, posso talvez observar sinais de desmazelo ou algum outro sinal de ferimentos auto-infligidos, ou unhas quebradas por raiva, dedos queimados de crack. Nada disso, ela tem charme, batom bem aplicado, braços sem picadas, unhas aparadas.
--Fale mais sobre eles.
--Eles me perseguem de noite, acordam-me em meio a sonhos onde fornicam com outros deles, uma confusão de pernas e gemidos. Ouvem-me quando me banho altas horas para purificar-me de tanto enxofre e sal.
--Sal?
--Sal. Não passo de estátua de sal, pois que olhei quando eles pediram que não olhasse e, na imensa luz que se seguiu, cidades inteiras se foram. Virei sal, e éter; e minhas feridas se abrem quando eles me perseguem assim.
--Clarisse!
Ela volta da vertigem, atingida pelo raio seco de minha voz que até a mim me assusta. Volta de longe, como se adernasse num barco infame, barco de Caronte levando o que restava dela em crescentes ondas do abismo fumegante.
--Sim?
--Você trabalha?
Ela suspeita de minha pergunta; ela coça a cabeça como se pensasse 'mais um deles' e solta, numa voz clara e sem medo:
--Sou cobradora de ônibus, o senhor pensa que sou vagabunda?
--Ninguém disse isso. Só queria saber sua profissão.
--Pois sim! Quer é me por na lista...deles!
Olho em torno, alguma coisa me diz que seu temor talvez seja o meu e qual vaso comunicante, ela me passa o suor do pânico, sentindo nos olhares dos vigilantes um peso de faca, talvez a câmera que paira acima como um olho seco e vítreo de uma estrutura danada, o computador que chia e resfolega em sua paciente e metódica marcha mecânica. Ela me olha de esguelha, ela se prepara e se levanta.
-- Para onde a senhora vai?
--Para casa. Melhor ir para lá, tomar meu banho e ligar a televisão, onde eles me escutam.
--Eles falam com a senhora?
--Nos intervalos, doutor, nos intervalos.
Decididamente, ela nunca precisou de mim, nem lá, nem cá. Ela sai do consultório como veio e eu, no oco da surdez da surpresa, valho-me do que me resta de fé e chamo o próximo.
Que espero que não sejam eles todos.
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