Tenho uma espontànea afeição pelos diáconos das tarefas simples, despojadas, destituídas de poses e perfis pomposos - como aqueles em que se emolduram os ´´dotós´´.
Nutro uma purificada admiração pelos mestres de humildes ofícios, os ´´artistas´´, como se diziam dos mestres-sapateiros, figuras do povo, como o Artista Bittencourt.
Um lendário abolicionista, artífice do melhor humanismo e um nome de rua na Capital - ele que doava uma parte de seus ganhos, hauridos com as mãos, as colas, os couros, para amalgamar a humanidade, pelo parentesco da alma e não pela diversidade da cor.
Reverencio o carteiro, esse herói pedestre, ainda que ontem ele me tenha obsequiado com contas atrasadas, mais os juros de mora, por conta daquela sua greve...
Mas é ele que ´´dá as cartas´´. Traz contas, sim, avisos com ´´AR´´, credores atrás do seu ágio. Mas é ele quem traz, também, aquela ´´cartinha surpresa´´, com a bem-vinda notícia da ´´antecipação do décimo-terceiro do aposentado´´. Ou a devolução do IR, aquele beatificado dinheirinho esquecido pela memória, mas sofregamente aguardado pelo bolso, aberto e ansioso como boca de jacaré.
Deus te abençoe, amigo carteiro. Quanta emoção trazes escrita, quantos suspiros garatujados pelo lápis comum ou pela caneta Bic. Quantas novidades impressas - tão mais ´´pessoais´´ do que a eletrónica Internet. São mensagens em papel, cor, tinta e cheiro.
Quantos selos viajados desde terras longínquas, guarnecendo envelopes de tarjas bicolores - e enfeixando cartas de afeto que correram o Mundo, antes de chegar.
Há cartas amargas, sim, contas a pagar, saldos negativos, intimações extrajudiciais. Mas - salve o carteiro! - há também aquela carta perfumada, trazendo o generoso odor do amor, a palavra em forma de flor, o verbo que consola a dor.
Guardo também o maior respeito por ti, amigo lixeiro, que exorcizas os aromas malsãos, os ares mefíticos, os odores da peste. Tu, amigo, que és um destemido cruzado em defesa da boa atmosfera e do bom olfato. Carregas nas mãos e nas costas as sujeiras deste mundo, para que os pagadores de impostos possam respirar - e os maus administradores, infelizmente, camuflem o próprio ´´mau cheiro´´. Mas disso não tens culpa, ó espantalho dos rejeitos humanos, ó carregador dos velhos barris de imundícies - tu, que sequer recebestes a insalubridade pelo vexatório papel de cano móvel da humanidade.
És imaculado, puro, impoluto por dentro e por fora, amigo lixeiro! De tua alma se desprende um cheiro bom e honesto. Bem mereces aqueles versos que Drummond dedicou ao ´´Homem do Povo Charles Chaplin´´, homenageando os ofícios que Carlitos desempenhou no celulóide.
O sapateiro nunca foi além das chinelas. Sempre foi um artesão disciplinado, conformado com o seu modesto destino de consertar com as mãos a garagem dos nossos pés.
Ainda outro dia comemorou-se, sem alardes ou foguetes, o Dia do Sapateiro. Deveríamos todos render nosso tributo a esse artesão tão importante, que possibilita o caminhar da humanidade. Obrigado, mestre sapateiro! Mereces muito mais do que a torpe paga que costumam te dar.
Pouco dinheiro e muito chulé.
Poucos reconhecem que do teu prego bem pregado dependem o dedão, o dedinho - e, logo, o bem-estar do nosso coração.
* Sérgio d Costa Ramos (Diário Catarinense, SC, Variedades, 27/08/2008).