Nas montanhas, o ar é rarefeito. Falta-me a respiração, mas aprendi a não violar as regras desse mundo por vezes inóspito, por outras vezes violento e ventoso. Vezes há em que, caminhando, vejo os rastros de pássaros loucos, talvez de uma ou outra fera, um lobo, um urso. Nunca, jamais os encontrei frente a frente. Prefiro evitar o sofrimento inevitável de ser mastigado, fatiado e desfeito em tiras.
Hoje, no entanto, acordei mais animado, após a fria noite alimentada de frutos silvestres, um passarinho que assei, a água de um regato cristalino. Hoje acordei estranho. Ví vultos lá embaixo, apurei o ouvido:
--Ahooooyyyy!
Esse grito ecoa nas paragens e repassa o fundo da montanha, enche o vale de sombras coloridas e cai como uma gota na superfície do lago gelado que tem lá suas trutas.
--Evoéeee!!!
--Ahoyyyyyy!!!
--...yyyy...yyyy...
O eco açoita as nuvens. Desço com calma, porque as rochas escorregam. A vegetação escasseia lá para cima. cá embaixo, algumas moitinhas, uns arbustos e olhe lá. Sinais de cobras, peles descamadas expostas ao sol passageiro...E mais rastros de bichos.
Chego junto ao grupo. Um deles usa um óculos colorido e espelhado. Outro usa aparatos de esqui. Mais dois trazem aparelhos de sobrevivência. Tenho de lhes dizer:
--Nisso aqui, nada disso serve; se quiser sobreviver, tem de se desfazer de tudo!
Um olha para o outro,assustados, vendo que nada tenho senão minhas botas gastas, meu abrigo de pele, minhas peles todas e meus ossos secos, salientes nas faces.
--Há quanto tempo reina aqui nestas mesmices, moço?
--Há muito, muito tempo.
Um e outro se incomoda. Percebo o que lhes espanta, é minha secura, minha aspereza. Nesse mundo das altas esferas, aprende-se a ser seco, comedido nas falas, económico nas efusões. Nada de desnecessário se exige; é a paz das alturas.
--Conhece o local?
--Como a palma de minha mão.
--Viemos procurar alguém.
--Posso ajudar.
Confabulam, eles entre si, eu comigo mesmo. Enfim, chegamos ao acordo tácito.
--Está bem, vamos todos juntos.
Lá vamos então, eu na frente, o batedor aos lados, os esquiadores com as peças nas mãos e o homem do óculos engraçado à minha direita. Subimos com dificuldade, eu já me acostumei ao abraço das frias nuvens e ao frio garoar dos lados da montanha mais enganadora que eu conheço. Ouvimos um ruído, faço que não, tenham calma, é um coelho. Para nossa panela, isso sim!
Depois do guisado, preparado com a agilidade adquirida pela frieza da fome e do requinte da sobrevivência, eu estou descansando. Pergunto sem mais:
--A quem procuram, posso saber?
--Claro que sim.
E mostram minha foto. Arre Que estou me procurando ainda e até hoje não me achei.