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Cronicas-->A Sombras -- 11/07/2014 - 23:45 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Cá fora está uma lua danada de grande, parece um queijo brilhante que espalha uma luz indireta sobre as coisas todas; dir-se-ia que as coisas se parecem com elas mesmas, se não com borrões delas, indistintos. Caminho sobre a grama seca, esturricada pela falta de chuvas. Lembro-me que há locais onde a água falta e onde pessoas gritam por carros-pipa. Lembro-me de que bebi. Bebi do orvalho que vem das nuvens e dos ventos que transformam o céu numa massa disforme e corredia de estranhas caratonhas. O vento contribui com o enredo dramático: É como se toda a natureza conspirasse criando um clima propício para a divagação, a reflexão. O barulho de minha caminhada se faz ouvir adiante, espanta os pequenos animais que habitam as florestas de meu íntimo degredo, pois é assim que me sinto a essa altura, um degredado em um farol distante, batido por turbilhões ventosos e por ondas de um silêncio deveras incerto. Crac, crac, crac, fazem os meus pés sobre a maltratada grama. Gravetos, lama ressequida, resquícios de um deserto que nunca se houve por secar, pois que ele já é assim desde milênios e retoma devagar sua posição de destaque. Engraçado como são as coisas: Elas já estão ali, só se sabe delas quando elas agitam os gravetos numa noite como essa. As coisas que habitam o seu íntimo, há como negá-las?

--Você bebeu?
--Um pouco.
--Mas seu andar não é o de um ébrio.
--Nem o seu de um santo.

Há conversas que incendeiam grandes partes de nós e há outras que escondem de nós o momento mais precioso que nos convém esconder. Ai de nós, somos assim, como cavernas de medo e horror porque sob nós amontoam-se todas as circunstâncias atenuantes de nossa civilização. Ah, se soubessem nossos meninos e meninas o quão grande é o apreço que nós temos pela dita civilização! Pagamos um preço, é certo. Pagamos um enorme imposto a esta escravidão servil, a essas pequenas passadas que nos levam a grandes passos; só um Deus sabe como pagamos tal taxa. Mas é assim mesmo Enquanto isso, a grama estala, rumoreja sob os pés de dois homens que conversam, um deles se diz presente, outro incorpóreo mas nem por isso mais que nunca palpável.

--Beber não adianta nada. Nada.
--Adianta o quê então? O que adianta? Sorver néctar? Ambrosia? Você e esta mania de poetizar. Tudo é uma lástima. O segredo é que, quando se fecham olhos, olhos se fecham. Mais nada além disso.
--Niilista. Homem sem fé. Assim de quê adianta prosear sobre o Infinito?
--Você deve saber mais que eu; apenas caminho sobre a grama, meus sentidos dizem que o vento é frio, a luz de prata cria as formas que ilusoriamente me convencem de que ainda, e apesar disso tudo, eu vivo.
--Cogito, ergo sum.
--Como nunca.
--E faça-me o favor, cogite muito, porque eu não estaria aqui...

Um dos homens estaca, o outro suspende a respiração, mais um terceiro que é a sombra de um deles pára ao comprido e a quarta pessoa, que seria a sombra do último, estaca assustadiça; que pilhéria é esta?

--Mas como assim? Nunca o chamei aqui. Caminho sobre a grama, estou pilhado numa noite escura, os ecos das nuvens me corroem, o vento sopra em meus cabelos grisalhos e é só.
--Vê-se que bebeu. Não se acostuma. Finge que é artista, não passa de um lamentável ermitão disfarçado.
--O quê?
--Sim, pois nunca se disse a si mesmo que o mais saudável dos homens é, no mínimo, aquele que mais se afasta dos outros homens?
--Nunca disse isso.

A grama farfalha. O vento cicia nas frestas; lembra-se o mais novo que esteve em Roma, imagina o tamanho da Lua brilhando entre as colunas de templos abandonados, lembra que uma vez mais ele percorrerá aquilo, talvez de caminhos diversos. Sempre e outra vez. A luz torna o ambiente surreal. Tudo se assemelha a um sonho.

--Vê? O eremitério lhe cairia bem.
--Vá se danar.
--Como queira. Mas nunca diga, depois, que não o avisei.
--Sei, sei. Você sempre diz isso, sempre que caminhamos aqui. Faça um favor: Fale para sua sombra se apressar, pois que ela se atrasa sempre e depois esquece o caminho de volta. Não quero sair por aí, nesse inverno, caçando as elegias de alguém.

 

Bingo.

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