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Cronicas-->Primeiro do Ano -- 01/01/2015 - 19:07 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Primeiro do Ano

Primeiro do ano. O primeiro dia de uns trezentos e sessenta e tantos, cada ciclo destes uma dezena de tantos, para ao fim virar um século e apagar a gente das memórias coletivas, a não ser que você seja imortal; isto é, você tem de realizar algo de inesquecível e de tal forma bem feito que por séculos não se esqueçam do que você cometeu. Normalmente, o que se faz não passa de uma lembrança distante, um fulgor esquecido num clarão de nuvens, um amor que nunca foi sublimado ou um pai distante que nunca voltou ao lar inteiramente. Nossos amigos estão assim na beira do mundo, na quina do vale-tudo. São três e poderiam ser quatro ou dois, mas o terceiro que poderia vir, veio na forma do outro que o substituiu à última hora e o quarto que viria, seria o quinto mas teve de sumir por uns tempos. Enfim, elevam-se as vozes, cada qual com seu copo cheio, cada um com seu instante breve e efêmero; há várias vozes, num bar perdido na periferia do mundo em que vivem. Há uma chuva rasteira lá fora, melancólica e pouco eficaz.

--Essa não enche represa.
--Quem, aquela ali?
--Pára de olhar a moça; o rapaz é parrudo. Vais levar uma surra.
--Não estou falando dela. Estou falando da chuva, lá fora. Você só pensa nisso!

E a chuva tamborila na calha solta do bar de seu Miguel. Barulhos assim me lembram a infância, adormecendo com os trovões que passavam e com as águas que, represadas nas calhas plenas de folhas, repentinamente desciam por canos vazios e vinha aquele ruído cascateante, agudo, e que pouco a pouco suavizava e se tornava um gotejar grosso...

--Olhos perdidos, meu amigo...
--Pois é. Vocês já pensaram que hoje é dia primeiro do ano?
--...Para falar a verdade, desde ontem de madrugada. Fiquei até sem dormir. Uma preocupação danada!
Fala o de olhos claros, cabelos encanecidos precocemente por seu vício de fumar tudo o que se pode.
--Estou falando sério. Hoje é o primeiro dia do ano de...
--Não fale, deixe adivinhar! 1956.
--Dois anos antes do Brasil faturar a primeira copa do Mundo.

Dois deles se agitam. Um toma um trago mais profundo, até suspira. O outro bate na mesa.

--Te esconjuro: Fantasmas não se trazem à mesa. O tal do futebol virou espectro; o negócio é investir em vôlei, surfe, pingue-pongue e handebol. Futebol quem sabe é a Alemanha.
--E mais um da Alemanha.
--Mas, sério, primeiro dia do ano de...
Um deles, mais romântico, o que tem barbicha comprida à moda de intelectual, rememora:
--1983. O ano em que conheci a minha musa...
--Tua musa te trocou por outro rapidamente.

Os três se entreolharam e de esguelha encompridaram o olhar para a ruiva acompanhada do tal parrudo, que fazia a festa deles na mesa ao lado. O otário não notava nada ou se fazia de desentendido; ela se sabia olhada mas discretamente, não se deixava intimidar e continuava saboreando o sorvete gigantesco que só os jovens podem se dar ao luxo de comer.

--Olha o tamanho daquilo...
--Jogo aéreo?
--Não, o sorvete.
--Um Everest. A ponta tem uma bandeira fincada pelo tal braço do parrudo careca.
--Tinha de lembrar.

Todos recorrem aos copos, magnânimos em bebericar e benevolentes em falar sobre o outro.

--De novo...Hoje é dia...
--Primeiro de Abril. Ontem lhe contaram uma mentira, hoje você acordou e sabe que vive imerso na mentira. O mundo se gaba de ser uma verdade, a realidade não passa de primeiro de Abril. Contaram-lhe um sonho, você nunca acordou dele.
--Filosófico o rapaz.
--É o álcool, ilumina os neurônios mais empedernidos. Isso é apenas o começo. Daqui a pouco ele começa a reclamar da mulher que sai com outro e pode, inclusive, chorar.

Primeiro do ano! Pode ser o primeiro dia do melhor ano de nossas vidas. Também pode ser o último ano de nossas vidas, quem é que o sabe? O destino não leva um e outro, assim, do nada? Hoje você está aqui, todo pimpão; noutro dia, deitado, sonha sem acordar. Já pensou nisto? E daí que...

--Daí que, sem saber, passou-se mais um ano. E começou outro, sem pestanejar.
--Ué, o que você queria que Deus fizesse? Parasse o tempo?
--Deus não existe, está morto ou odeia todos nós. Ou tudo isto na ordem inversa, como o quiserem.
--Sempre filosófico, o rapaz.
--Em que baseia esta crença?

O outro, sorvendo um gole mais graúdo, enxuga os beiços e exclama:

--Não acredito em nada. Somos puro acaso. Estamos aqui por acaso. Veja, nosso amigo nem veio...E eu estou aqui, e vocês me ouvem falar sobre um ente que, definitivamente, não existe.
--Se ele não existisse, faria diferença? E ele existindo, que é que nos move?
--Como você explica o primeiro movimento?
O outro, olhando nos olhos o interlocutor, não deixa por menos...
--Primeiro movimento? Nunca existiu; estamos aqui para sempre. Este bar, esta vida, estes goles, tudo um acaso fatal. Tinha de acontecer.
--Daí que, se eu parasse de beber, talvez alguém morresse ou deixasse de viver uma paixão definitiva, não é?
--Por aí. É a teoria dos quanta.
E todos olham a ruiva de olhos claros e rosto cheio de sardas. Uma graça; ela sabe.
--E você diz que tudo é acaso. Não seria por demais pessimista pensar assim?
--Talvez, meu caro amigo, mas prefiro ter esta liberdade a imaginar que tudo está escrito num livro que vai ser lido quando eu morrer e que vou ser pesado numa balança junto com minhas penas; a depender delas, ou serei jogado num turbilhão de almas tristonhas ou viverei numa praça celestial...cercado de tristonhas almas. A liberdade de se saber sem grilhões é o que me move.
--Até que chega o momento de pagar a conta. Aí, nem o Primeiro Movimento o move. Nem os quanta, nem nada.
--Exagerados!

Todos bebem, ouve-se o gorgolejar da cerveja descendo as sedentas gargantas. Com este calor previsto há séculos, qualquer um beberia à saúde de sabe-se lá quem, ou à ruiva sardenta que se parece com a ninfeta de uma tal trama, vai saber se é ela mesma, com aqueles olhos enigmáticos que nunca se satisfazem em olhar só o sorvete; a tatuagem em seu pescoço, imitando uma pequena ave, talvez corrobore com as teorias do nosso sisudo amigo de barbicha; ou talvez seja o símbolo de uma alma grandiosa que ela possui, a mesma que encantou o tal parrudo que tem mais braços que cérebro e talvez nem imagine( nem de longe) que poderia não ser ele que está ao lado dela, cometendo gracejos imperdoáveis a uma sílfide destas; ela sabe!

--Primeiro do ano. E nós aqui, bebendo a cerveja gelada do bar do seu Miguel; é impressionante...

Todos se olham, erguem os copos, batem-nos um ao outro, até a ruiva sorri um pouco, o parrudo foi urinar e ela ergue o copo junto com eles; bem que ela poderia se sentar aqui, conversar sobre Nietzsche, matéria escura, aglomerados de nebulosas, o Paradoxo de Fermi ou sobre a cor de sua calcinha; tanto faz. Ela sabe!

--Feliz ano novo!
--Tin tin.
--Ao acaso!

 

A voz dela enche o ar da alegria que faltava...Ela sabe!

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