Usina de Letras
Usina de Letras
71 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 


Artigos ( 62823 )
Cartas ( 21344)
Contos (13289)
Cordel (10347)
Crônicas (22569)
Discursos (3245)
Ensaios - (10542)
Erótico (13586)
Frases (51217)
Humor (20118)
Infantil (5545)
Infanto Juvenil (4875)
Letras de Música (5465)
Peça de Teatro (1380)
Poesias (141100)
Redação (3342)
Roteiro de Filme ou Novela (1065)
Teses / Monologos (2440)
Textos Jurídicos (1965)
Textos Religiosos/Sermões (6301)

 

LEGENDAS
( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )
( ! )- Texto com Comentários

 

Nossa Proposta
Nota Legal
Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Cronicas-->Panelas me mordam! -- 16/01/2015 - 16:57 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Algumas coisas não se explicam e há algo mais que o acaso para que se tornem momentos de vida e não escuros terrores. Pois que se veja assim obra de um acaso, mas de um tamanho caos que se pode dizer talvez uma ordem perfeita, tal é sua implicação. Nada poderia anunciar o que se avizinhava àquele rapaz, pai de duas crianças ( uma ainda dentro da barriga de sua esposa) quando começou o temporal; assim foi, com anúncios, como os anjos se fazendo valer de suas cruezas ou de querubins se fazendo entender através das esferas inomináveis.

Encontro-me em frente a ele, a esposa grávida de pé, uma pequena menina de cabelos encaracolados abraçada a ela e um eletrocardiograma dele em minha mão.

Ele tem trinta e dois anos. Poderiam ser quarenta, talvez pelo seu olhar se vê que envelheceu um bocado e foi em pouquíssimo tempo, pois tem os cabelos desgrenhados, sua rala barba com algum sinal de chamuscada e olhos vermelhos de quem talvez dormisse pouco, há pouco. Por quê ele está ali?

--Seu moço, eu estava ajudando minha mulher; sabe como é, hoje em dia não dá para não ajudar. Ela fêz curso de professora, dando uma aula para minha filha mais velha--Ela aqui ( e passa as mãos pelos cabelos da menina de seus seis anos). Eu estava na cozinha quando começaram os trovões.
--Sim, prossiga.
--Pois não é que lavava as panelas, Jerusa?

A esposa, assustadiça, faz que sim com a cabeça. Ambas, ela e a filha mais velha, estão como que turvas, algo se esconde ali de secreto. Teria ele ingerido algo? Teria ele um histórico de violência, daí talvez as duas serem tão discretas no falar? Ou estaria ele irremediavelmente perdido para o antro sujo das drogas, como acontece muito nesse antro sujo que é o mundo? Ah, desde já eu advirto: cuidado com as generalizações, as banalizações, os enganos fatais.Acostumo-me agora a mais do que falar, ouvir, deixando a verdade ser exposta como um nervo; daí, tiro minhas conclusões que, em geral, não são muito favoráveis nem a anjos, nem a querubins e menos ainda aos seres humanos que nos cercam de fatuidades.

--Pois não, estava lavando panelas.
--Pois é, seu moço. Daí que começaram a cair os raios. Ouvi dizer muito na televisão que o Brasil é um país de muitos raios e trovões.
--Perfeitamente. aliás, muito cuidado, viu, menina?--Tentei eu, em minha tentativa de ser neutro talvez em um segredo impensável.
--Pois é. Peguei a panela maior, já tinha lavado as outras; de repente, um clarão!

Ele ficou trêmulo, a esposa esbugalhou os olhos, a menina a abraçou mais forte. Percebi que algo havia, realmente, impressionado aquela pequena família.

--Pensei que os raios caíam fora de casa, seu moço. O raio caiu na panela, foi fagulha pra todo lado. Uma explosão dentro de casa, pensei que o botijão fora para os ares e a primeira coisa que pensei, na minha tristeza de segundos, foi a de perder minha família que eu trabalho tanto para manter...

A esposa chorava agora e a menininha agarrava-se à sua mãe, ele com os olhos tristes boiava num mar de recordações que o faziam ficar distante... Eu então tive de perguntar:

--você está me dizendo que...Caiu um raio dentro de casa?
--Isso mesmo. Daí tive essa dor no peito forte, daí que não me lembro de nada...

A esposa, até aqui calada, emendou de improviso:

--Pois é, doutor. Ele de um lado, a panela do outro, pensei que tinha se desintegrado, tal foi a barulheira. Mas ele estava caído no chão, todo duro. Todo duro, esquisito e não respondia.
--Meus pés estavam quentes, seu moço.
--Você usava sapatos?
--Não, estava com uma sandália de borracha grossa que eu pus para não ficar com frio nos pés. 
--E ele, seu doutor, ele ficou assim esquisito. Dizia na hora que não sabia quem éramos nós.
--Daí meu olho vermelho. Porque eu chorei, seu moço, que nem sabia meu nome, que é Josemar; meu pai era marujo, me deu esse nome antes de sumir em alta pescaria lá em Alagoas. 
--...Daí ele se lembrou de tudo; mesmo assim, levei o meu marido ao Posto de Saúde, que fêz este exame...

...O eletrocardiograma, em minhas mãos. Normal, saudável como o coração do filho do marujo. Eu raciocino nestas horas que há mais traços entre o céu e a terra do que sonha nossa vã cardiologia. Em minhas mãos, o resumo de um verdadeiro milagre, na forma de picos, e vales, de uma regularidade incrível, de um pulso de um homem redivivo. Ele me olhava com seus olhos vermelhos de choro recente, a filhinha de lindos cabelos se aproximando dele, a esposa em pé, digna como toda mulher grávida, vaso sagrado que traz a vida a este combalido planeta. E eu, ridículo, com o eletrocardiograma escrito no laudo: Normal. Em minhas mãos. Ele ali. Ficamos calados. Sua esposa quebrou o constrangimento.

--Doutor, o senhor tem alguma fé?
--Digamos que sim.
--Pois nós temos. Sabemos que o que aconteceu não foi assim...
--Não foi um acaso.
--...Pois é. E tenho a dizer que ele está bem. Esta dor que ele tem foi da descarga elétrica. é como se fosse uma convulsão. A dor vai passar com um relaxante muscular...

E eu me vi, de cima, sob os olhos de uma criatura que observava a nós cinco, esperando talvez um pronunciamento meu, ou nosso. E eu, eu olhei para cima.

Ah, tinha uma asa de anjo ali, mas ele deu a meia-volta de sempre e saiu com Josemar e sua família agradecida.

 

--Isso foi um milagre.
--Foi sim, seu doutor. Vamos à nossa igreja agora. Mas nunca que Josemar vai lavar panelas de novo: Homem na cozinha é um desastre.

Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Perfil do AutorSeguidores: 4Exibido 194 vezesFale com o autor