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Cronicas-->Dezembro de Satã -- 18/01/2015 - 13:21 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Folheando coisas achadas em uma lata de lixo descartável, dois colegas constatam que a vida pode ser descartável, tudo pode ser descartado, menos os sentimentos.

--Veja, um caderno de memórias!
--Mas quem em sã consciência, jogaria fora um caderno de memórias?
--Vai saber...Um portador de Alzheimer?
--Mórbido hein? Não tem graça nenhuma. Aliás, nada do que você fala tem graça. Nada do que você escreve tem graça. Tudo o que você faz cai no vazio do esquecimento.
--Eu? Ué, mas quem descartou o caderno foi esse cara; não tenho nada a ver com suas pretensões literárias...

O outro, refletindo e suando sob o sol do inferno de Satã, aquiesce com a cabeça.

--Está bem, só para o caso de se meter a escrever o que não deve. Porque, se escrever, vou falar que não gosto do que você escreve.
--...Tá. Vamos ler um pouco?
--Leio eu, que você sempre carrega nas tintas. Se você escrevesse algo, que jamais valeria a pena ler, seria algo à la Dostoiévski, ou coisa mais pesada. Dramático!
--Leia você, então.

O outro rapaz, esfalfado de tanto recolher papeladas, caixas de leite, garrafas pet e latinhas de refrigerante, dá uma pausa, pigarreia e começa:

"Setembro de 2011. Vejo um pássaro, desses que parecem aves-do-paraíso; sua cauda é comprida, tem penachos amarelados. Isso, junto ao lugar em que estou, traz muita paz...Um lugar de paz perdido num campo de luz em meio a uma chapada de diamantes... Virei cá outras vezes, só para reviver a paz do nada fazer, aliado ao nada ouvir para tudo refazer dentro de mim. "

--Começou bem. Por qual razão se joga fora um trem desses?
--Uma filha danada com um pai desalmado, uma esposa que quer se desfazer das últimas lembranças do finado, uma amante que finalmente se livrou do traste e ficou com sua grana...
--Leia mais.

"Janeiro de 2012. Último ano do Mundo, segundo a profecia maia. Todos morreremos em uma catástrofe cósmica; Eu já comprei a passagem para Machu-Pichu, no Peru e nos Andes. Nunca vi e quero fitar do alto o mundo que virá abaixo. Assistirei de camarote e Annitta me acompanhará. Ela já vive comigo há tanto tempo que aceitou mais esta ideia. Ela é tão suave; palavra que nunca mulher nenhuma me tratou assim, com a delicadeza dos apaixonados. Somos diferentes, mas somos fundamentalmente iguais, ela também gosta de minhas aventuras. Sonho em, um dia, percorrer a trilha de São Tiago; ela já disse que vai também. Juntando os pedaços, somos cacos de uma mesma fôrma, olhem só."

--Será que o mundo acabou?
--Não, ou eu e você somos simulações lendo memórias de simulacros, rapaz!
--Você não tem senso de humor. Rindo, é melhor do que ficar se lamentando enquanto cata lixo dos outros.
--Leia mais, leia, afinal, eu é que sou o dramático!

"!2/!2/2012: Sem catástrofes, sem tremores de terra, sem finais de mundo. Eu a Anitta brigamos. Somos iguais, mas somos diferentes; ela não aceita que eu queira viver sozinho. Já vivi muito tempo acompanhado, agora quero apenas estar só, somente assim posso recolher meus pedaços pelo caminho e colar com a velha arma que eu sempre tive, estas doses de vinho do Porto, meus papéis embarafustados e estas máquinas de martelar letras. Tenho duas Lettera. Não me desfaço! Annitta até me deu um computador, prefiro as máquinas, concentro-me mais. Querido diário: Como me faz falta aquela moça. A outra não dá conta de meus pitis. Eu não acho uma coisa, a culpa é dela e só dela; lá vou eu a gritar e resmungar. Ela definitivamente não me aguenta nem mais um mês. Talvez seja isto o sinal dos tempos, fico um velho chato e murcho; quem pode me aguentar? Nem minhas filhas ousaram! Cada uma me manda de vez em quando uma carta lá onde vivem com a mãe. Cartas compridas que eu nem leio até o fim! Não dá. Prefiro o texto telegráfico de meus sobrinho: ' Hoje fui à praia; havia um monte de mulher gostosa, mas a melhor delas era a minha, hahahahah'. Uma pândega. O menino é maroto, é boa gente e lembra-me muito o que fui. Maldito tempo, tenho de parar agora, escasso o tempo."

--Caramba, e daí?
--Daí que...

" ...Faz calor danado neste Janeiro de 2013; dá uma sensação de peso e cansaço que desanima, a gente se carrega, o clima se anuvia e o sol nos traz um mormaço espesso, a névoa que sufoca, um denso torvelinho que parece com uma nódoa de medo. Estranhas palpitações; sempre que as tenho, pressuponho uma desgraça. Em 2004, sonhei com gigantescas águas, veio o Tsunami. Hoje sonhei com labaredas, vem este calor. um magma que talvez seja africano, uma modorra de morte amarela que amarra minha língua ao céu da boca seca. Por favor, tragam-me vinho, não água. Vinho, gelado, molhem minha boca que eu suspiro de medo e acredito que, em certo sentido, posso carregar vossa dor..."

--Ele sonhou com labaredas?
--Está escrito aqui.
--Tem mais coisa escrita?
--Tem.
--Leia.
--Está bem.

"Dezembro de 2013. Final de mais um ano, ou menos um ano em minha vida. Tudo se resseca de cinza e pó; minhas amizades se esvanecem, minhas memórias se aquietam. Espero a queima de fogos; já ouço as correrias e gritinhos de 'Feliz Ano novo' e os tilintares de taças; o vizinho de cima grita: Cheeeeega e cai estatelado, estou acostumado à sua loucura, eu ouço a esposa gritar com o marido, 'assim não dá, Genésio, olhe as crianças, vai beber na casa de sua mãe', lá no outro prédio um casal transa de janelas abertas pra gozarem juntos na chegada do ano, lá na rua passa um pintoso gritando que está chovendo homem e eu aqui, com meu champanhe e minha eterna amiga, Annitta, que, sem ter onde passar a não ser comigo ( os filhos estão fora) veio passar aqui mais um ano que se foi; como o tempo é relativo. Nos anos da juventude, passam lentos, maravilhosos e luminescentes. Agora, como uma foz de rio, tudo alentece mais e rapidamente se condensa em jorros de uma atroz saudade, a saudade do que fomos e ousamos ser;. O que somos agora? Nada, absolutamente nada. Somos uma partícula num mundo minúsculo, escondido na rabeira de um monte de estrelas aglomeradas num Infinito vazio e frio. Simples assim. Não suporto. E este calor! E este cheiro ! Este cheiro que emana das ruas salpicadas de pólvora, este suor que escorre enquanto Annitta prepara o prato que será a ceia; já sei dos ganhadores da Loteria e da Corrida. Só não sei quando é que o veneno fará efeito e quanto ainda tenho de..."

--..E daí?
--Daí, não tem mais nada.

Os dois se olham. O mais dramático enxuga o suor. O mais seco, o que leu, fecha o livro de capa madreperolada. Um silêncio se abate. Recortes caem de dentro, fotos de Machu-Pichu, da Lagoa do rio, duas lindas meninas escapam ao inexorável, o sol brilha ao alto ( este sol de Satã) e eles retomam os trabalhos, calados, plenos de vida e tristeza.

 

Foi assim mesmo que contaram para mim, enquanto esmagavam as latas com os pés. Nenhum me olhava nos olhos. Os dois mais que suavam; era hora de parar com aquilo.

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