O vento agita os cabelos de ambos, enquanto lá de dentro do apartamento, vem uma música suave. Os seus amigos conversam animadamente, é uma festa e desculpem-me dizer, comecei mal. Nada que não possa reparar, no entanto; eu poderia ter começado com sua apresentação. Seria por demais sórdido iniciar assim, então, resolvi que o apartamento deles seria um belo cenário para uma paixão não correspondida.
--Não haveria um momento de despedida?
--Isso não me importa mais!
--Como não?
--O que fará agora?
Poderia indagar o moço de cabelos ruivos à beira da amurada, pois que o chão se lhe balançava e ele mal se segurava. Um outro ria à beça, o outro espirrava e a sala recendia a incenso e alegria. Só que lá fora, da quina do navio, pendia a corda e as ondas batiam furiosas de tempestade; clarões teimavam em lembrar do tempo que se fora, e a espera, ah, ela se revestia de relógios de pulso e tique-taques que se não se faziam ouvir era porque o balanço das ondas os cismava tanto que até o encanto soçobrara, restando só a beleza do encontro que houvera.
--Isso não importa mais!
--Como não?
--Jamais tive sua presença; foi um engodo.
--Mas, você não entende?
--Bêbado, sim, racionalmente, nunca.
O som de uma batida afro desperta uns passos de gloriosos passados, de braços surgem gestos, de mãos surgem os copos e todos gritam, viva, viva! E lá, bem no muro cinzento, estão os dois amofinados pela presença constante e alucinante do fim de tudo. O Fim de Tudo, esse ar que nos falta quando queremos encarar o inevitável, o abominável, a percepção de que algo mofou, de que uma coisa antes prazerosa se tornou, no mínimo, extremamente angustiante, para não falar em mortalmente insana.
--Batuque!
--Ritmos noturnos; afro-reggae-jazz-samba-canção.
--Não me importa mais nada!
--Ei vocês dois!
Da amurada do navio, vem o sinal de enfezamento dele e um duro olhar dela, porque não há mais dois, há dois ali e um é um e outro, menos ainda. Estão ali, mas já se somam a outros e outras; ele já não se vê nela nem ela se reflete nele. A boia lançada, o mar movediço, nenhum deles a quer. Nem ele que não se importa, nem ela que não se esconde disto.
--Acho melhor assim.
--Não me diga! Não me importo.
--Você está bêbado!
Um corpo se pendura na amurada; todos se levantam e o navio suavemente balança, o ruivo sai para o banheiro, o outro segura o mal-amado, a imprudente se joga no sofá e termina tudo com mais uma rodada de vertigem.
--Não me enche.
Lente multicores em mil imagens de caleidoscópio, ele, ela, os dias todos, não deixem que se acabe, não, ele e ela, o gato ainda miando, o bule fervendo no fogão, ela com seu olhar encantador e ele ainda pensando nisto, não, não deixem que acabe, assim me vou, não a posso perder; não me deixem. Ela em pé, na luz do sol, sua sombra recortada, perfeita de luzes interiores e lindas corporeidades, ele com carinho tomando de sua sombra feita em luz, não, deixem-me dizer, talvez tenha mal começado esta história; deixem-me dizer assim, de chofre, tudo o que me vem à cabeça, pois que na amurada se viam as ondas do lá embaixo, o zelador era curto e grosso, daí não seu moço, desce aqui que eu converso com ela. E ele se fiando no muro, na viagem, na rotina e na aragem que vinha do mar revolto. Ela não! Coragem!
--Não enche, porra!
--Então, ela pegou aquele livro, sabe? Aquele, de Honoré...
--...E não é que ela falou: Assim mesmo!
--Sabia que aquilo ia dar, nisso.
Nisso, toca o interfone. O zelador, porra.
--Hã. Sei. Mas...Berrando? Como? Não, tem dessas coisas aqui não. Somos de respeito; são nossos amigos. Hein? O senhor é que está falando baixo. Ah, a música! Vou diminuir. Prometo.
--Quem é?
--O capitão. Vamos recolher o velame. Vem tempestade da grossa aí.