O mundo chacoalha, os passageiros deste ônibus somos nós, seis bilhões de almas. Seis metros me separam de um destino inefável, desconhecido; sobre a mesa repousa o cálice e meus olhos o devoram com extremo zelo, miudezas de um cristal bávaro que sobrou de um antigo enxoval, não sei de qual avó. Bárbaro. Vidro modelado, cheio de pequenas ranhuras que me fascinam desde a infância. Havia uma avó ancestral, disso eu sei, porém nem ela me ajudaria neste momento de intensa hesitação. Tudo o que sei é que eu existo, o cálice está lá, fitando o espaço que se sustenta entre nós, o Infinito borda suas texturas nas paredes do apartamento e meu programa favorito começa em meia hora. O livro tem seu palavrório, as páginas têm dobraduras de tantas vezes que eu repeti sua leitura( tenho o péssimo hábito de fazer linguetas e, pior, ler sempre os mesmos trechos para depois me lembrar que eu ainda relembro os começos e não sei terminar os finais. Duro é sentir que aquele caminho, aquelas rochas fatais, o mergulho no Abismo, tudo está lá, para sempre). A mesa está em seu lugar, pés roídos de tantas batidas em falso, arrastares confusos de diferentes moças do lar.
O cálice? Calma, senhores, calma, ele está lá, bandido, com suas intumescências, suas façanhas de vítreas impermanências; abriga em si o holocausto, o sacrifício de uma geração inteira; são seis milhões de gotas concentradas ali, esperando em doce excitação os caminhos de minhas vias ínferas; são estas que vão habitar os meus recônditos segredos e vão se misturar aos meus órgãos plenos de essências e hormônios, elas que finalmente se comprazerão de fazer parte de minhas mais sutis benevolências e de minhas mais altas vicissitudes. Deixem-no em paz, na falsa estabilidade que têm as ditas coisas materiais, na doce ilusão de Maya, como se existissem de si e por si mesmas; a saber a verdade, talvez o cálice se desabitasse de suas falsas crenças e existiria em um mundo paralelo onde eu, à beira de um rio clamoroso e cristalino, talvez terminasse de ler os mesmos verbetes e exclamasse, de mim para mim mesmo, que havia ali um sonho tão real que seus contornos transbordassem do cálice, do qual eu beberia e exclamaria de maneira suave, "já posso então saborear o licor que me der na veneta, fechar os olhos e sorrir com um final feliz".
Qual nada! O infeliz está ali, desinformado, quase em frangalhos me convidando de maneira vil:
--Toma de meu suave sabor, ó mortal pedante!
Ainda não.