Chega o paciente visivelmente abalado. Tem um cachecol xadrez, se bem que normalmente eles o são todos, de maneira geral. Tem ar espantadiço nosso querido enfermo--ou ele assim se acha, pois que a essa hora, enquanto dorme à larga a maior parte da plebe, só a realeza anda à solta, feito gatos invisíveis. Eis-me aqui, atordoado a contemplar o olhar esgazeado do tal gato que ronda as ruas enquanto dorme a plebe rude, roncando nas profundezas do Hades ou alçando vôos ininteligíveis em Zeppelins diáfanos; Vamos a ele.
--Doutor.
--Assim o dizes.
--Sério, Doutor.
--Conte-me tudo o que lhe perpassa essa dadivosa alma, ou o que restou dela a essa avançada hora.
--Estava eu a raciocinar em meu canto. Veja bem, moro só, estou só comigo mesmo, há tempos renunciei ao mundo embora ainda o toque às vezes...
--Quando o fazes?
--Quando preciso de enlatados, guloseimas, algo assim.
--Deveras?
--Doutor, estou à deriva!
--Como um barco em noite de bruma seca?
--Não! Pior. Eu cheguei à conclusão de que, mesmo estando só e se só é a condição inaudita de ser humano, pois que os animais vivem, só os humanos existem, cheguei à condição de que minha essência, isto é, o que sou, o que eu era e o que serei talvez seja um reflexo extremamente pálido do Ideal que existe, algures, de um projeto fracassado de uma Existência outra...
--O que ingeristes à noite, caro ser indelével?
--Doutor! Minha alma, meu ser, talvez eu mesmo esteja em degredo cósmico, pois que não passamos de mônadas insensíveis que jamais se aproximam em ciclo eterno de tornar vivente o que é absolutamente alheio à emoção e ao contato...
--...Entendo. Talvez um antiácido; um emoliente. Vou lhe prescrever sangrias e sanguessugas. Há também os báratros que prescrevem ventosas, porém acho-os decididamente medievos; loucos a usar de métodos bárbaros, absolutamente indescritíveis.
--Doutor! Desfaço-me aos poucos, desde que, ao ter esta visão medonha, olhei ao espelho...
--Prescrevo-lhe o melhor método: Quebre os espelhos que lhe roubam a alma e o espírito.
--Mas, veja, começo a desvanecer feito um fantasma...
Realmente, dos joelhos para baixo o tal indivíduo tinha razões para temer sua dissolução efêmera, fenômeno que não contava com minha ajuda. Ainda pude sentir o toque de seus dedos e a última imagem que tive dele foi a de seus olhos em desespero mudo, já que da voz subia um apelo débil:
--Doutor: Vou-me. Não esqueça de mim!
E assim como entrou, saiu o vento, a pneuma, o miasma de seu dúctil corpo.
Eu, de minha parte, fiz minhas anotações ao verso de seu prontuário, enquanto a luz de velas se alterou como se ali houvesse uma brisa.
--Oh, Deus, quiçá as ventosas lhe fossem úteis. Mas, enfim...É a vida, quintessência do Saber.