Estavam as quatro galinhas e seu mentor, Gallus Maximus, ciscando prosaicos milhos no galinheiro, até porque se não fosse lá, poderia ser no chão em qualquer canto---Coisa que eles todos prefeririam à soturnidade fria e escura do tablado onde elas viviam. O frio era forte, havia resquícios de sol lá fora, longe do aramado que limitava seu mundo à caverna em que viviam nos dias de semana.
Uma ou outra achava algo mais substancioso para deglutir, entre minúsculos vermes, aranhas ainda filhotes, percevejos raros e pulgas incomodativas. No mesmo momento, Gallus Maximus ordenava, célere e de crista em riste:
--Lá!
Todas acreditavam cegamente na palavra dele. Ele era um mito de dia, de noite era o Maximus. Ele não se fazia de rogado, ao sentir-se desejado por elas; também não economizava energias ao detectar algo rasteiro e sibilino chegando perto ou uma forma turva subindo pela cerca de trás que via entre as tábuas de sua habitação. Naturalmente se esgoelava e a gritaria assim espantava incautos visitantes. Temiam muito os gambás, famosos por seu vampirismo, ou os ouriços do mato, devoradores de ovos. Também já tinham ouvido falar dos lagartos que por ali se enfiavam, a comer os restos de milho que caiam pelas frestas do chão de sua casa.
Viviam elas em sua simples vida, sempre com a segurança de que se a vida assim ia, é porque devia ir. Vivia-se dentro do galinheiro o aqui-e-agora, interrompido às vezes pelos piados da coruja, os farfalhos das folhas ao vento forte, os rugidos e raios da tempestade lá fora. O mundo em que viviam era bom. Havia as águas lá fora, e era bom. Traziam-lhes milho, e era bom. Vez em quando, discutiam filosofia para passar o tempo, e era bom.
--O que vocês acham? O espírito precede a matéria ou veio antes a matéria e o espírito é parte da matéria?
--Há controvérsias.
--Matéria por matéria, sou mais o milho ( essa era Praxis, a galinha prática)
--Mas, antes do milho, quem fez o pé de milho?
--Ou, mais ainda quem fêz o milho que originou o pé que nos deu o milho que nos trazem do pé?
--Ai, minha nossa ( essa era Carijó, a meiga). Vocês ficam filosofando e o milho, ó, para o papo. A gente ouve, ouve e a vida continua essa mesmice. Queria aventura!! (lançava então um longo olhar a Maximus, que desviava o rumo, certamente sabedor de qual o destino que tomaria tal boataria).
--E então?
--Então o quê, minha filha?
--O que você, nosso líder, do alto de sua crista, acha que veio antes?
--Se a matéria, se o Espírito?
--Não, se o Banzé ou o Bidu! ( essa era a Ruivinha Irônica Provocante e Indomável)
--Calma, calma. Nem um nem outro fazem parte de nosso mundo. Se não fazem parte de nosso mundo mental, suponho que não existam. Se não existem, de onde raios você tirou essa?
--Sou antenada, malandro! Pensa que eu não ouço as outras cantando livres por aí, nas outras moradias? Elas segredam, chocam ovos e alardeiam modernidades. O mundo não é só esta lerdeza aqui.
--Sou mais o milho. Que papo besta ( e Praxis engolindo milho)
--Não é à toa que é gorda feito uma pata.
--Calma, senhoras, calma. Bem, se foi a matéria, se foi o Espírito? Acham de relevo tal questão?
--Relevo? ( essa era a Amarela, sempre distraída com as cores do mundo, sempre a que mais pensava)
--Relevo, sim, relevo. Se é importante, se traz alguma coisa para nossas vidas!
--Senhoras, calma!
Então, houve uma sombra. Um terrível ruído se fez. Começou com estalidos, uma ventania e um estrondo enorme. Depois, gemidos estranhos dentro da parte escura...Um alarido de suas vozes, penas de medo e espanto... Passado o susto, elas se juntaram a Maximus, em seu pânico. Aos poucos, voltou o silêncio lúgubre, alternado com gemidos estranhos.
--O que pode ser?
--Vejamos...Um ruído...
--Pode ser um galho que caiu. Mas pode ser também que algo tenha vindo de fora...
--Mas, por cima?
--Se veio de fora, e por cima, deve ser um pássaro.
Maximus, indutivo como sempre, raciocinava e as fazia pensar.
--Vejam bem, um pássaro vindo de fora e por cima, não seria um pássaro se não voasse.
--Por outro lado, se pássaro fosse, não faria esse barulho ao pousar.
--E que canto é esse? Pássaro cantam assim? Conheço os pipilos dos bem-te-vis, os gorjeios do Sabiá-do-Campo, os suaves sibilos dos beija-flores, mas...
--Sou mais o milho.
--Pare de comer! Pode cair o mundo, você só come!
--A vida é curta. Sabe-se lá se vou virar assado...Como sim! Não nego!
Imperioso, Maximus as instigava.
--Tudo o que supomos pode ser uma projeção mental de nossas fantasias. Podemos supor que pássaro não seria, até porque eles sabem voar como até nós mesmos não o sabemos.
--Sim...
--Por outro lado, veio por cima. Podemos pensar que deveria talvez estar aferrado à árvore que nos secunda esta parede.
--Pois é!
--De tal forma que chegamos à conclusão que ser alado não é.
--Se não é pássaro e veio por cima, o que será?
Novamente se juntaram em torno de Gallus Maximus; ele, impávido, continuava desfiando seu discurso na tentativa dele mesmo se acalmar com sua fala.
--Suponho que, como eu, vocês só imaginam. Tudo o que podemos ver se passa como um filme que se projeta na parede ali e que, das sombras, intuímos parte da verdade...
--Verdade!
--Você sugere que alguém vá ver o que é?
--E não é?
--Tem razão!
--Quem será que vai?
--...Discurso?
Todas olharam para a amarela, que distraidamente, olhava ainda as folhas que haviam se levantado após o baque do objeto não-pássaro que gemia seu canto a um canto dali.
--Você vai?
--Vou.
Lá foi a amarela. Segundos de silêncio. Nada de respostas ainda. Subito, ouve-se a voz dela, entre assustada e supresa:
--Oh, Jesus!
--Quem é esse?
--Modo de falar.
--Descreva o que vê!
Amarela pigarreia para dar importância ao relato.
--Vejo nosso dono, estatelado aqui. Ele está caído. Geme, parece sentir dor. Esperem...Levantou-se!
--Puta que o pariu!
--Finésimo.
--Que ele veio fazer aqui?
--Certamente passou por aquele vão dali ( e Ruiva aponta irônica para o buraco que causara a queda do Icaro dentro do galinheiro, sem asas e sem apoio.
Assim caminhava o galinheiro.
E eu, todo estatelado, até agora me lembro das galinhas me ajudando a levantar, o Gallus Maximus me dando tapinha nas costas e a risadaria de Ruiva e de Práxis. Só Amarela ficou pensativa, olhando-me de soslaio:
--...Dono? |