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Cronicas-->O Homem Curvo -- 28/10/2015 - 14:20 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Costumo caminhar pelas ruas observando as pessoas. Isso as incomoda, obviamente. Há alguns dias, eu andava próximo à minha casa e notei o vulto curvo, cansado e meio ensombrecido de um senhor já gasto em anos; seu olhar mostrava que o chão, a seus pés, dificilmente se manteria assim por mais um tempo. Eu, do alto de meus pouco mais que um e meio metro, napoleónicas medidas, orgulhava-me de meu porte (quase) ereto, pois que o porte, mais do que o que mais lhe diz respeito nessas horas, definitivamente, é o que menos importa.

O vetusto senhor passou perto de um tronco envelhecido que há perto de casa; os nós da madeira, as folhas aderidas às nodosidades e cavidades, as curvaturas da penosa existência da velha sobrevivente quase se amalgamavam aos traços do velho navegador, Ulisses arrependido de tantas urdiduras, quase triste de não ter talvez o final de seus companheiros na ilha de Circe. Ah, cruel vida que marca assim todo o humano que caminha!

Eu sorvia algo como uma vitamina misturada a um suco; o sabor é levemente ácido, a cor indefinida e a textura de muitas vidas. E o velho amargo caminhava lento, talvez sem algum rumo definido, parecendo longe da algaravia do rumor do tanto que se lhe andava perto, das crianças que passavam com mães extremadas, dos cães alforriados temporariamente de seus cadeados, das empregadinhas alcoviteiras a buscar pão para as patroas, os casais sentados às mesas acima do nível das calçadas, da gente toda turbilhonando feito um mar de olhos e braços, mãos e gestos, pães e circos.

Terminei meu suco indefinido, no estado de humor que talvez um pouco me lembrasse o das árvores compassivas a observar seus polens voejando sobre os fios dos postes ou os passarinhos teimosos em ninhos de complexa ramagem. E o senhor, como um barqueiro, andando, talvez tenha me dado a impressão de carregar à mão um báculo, o seu olhar despedindo faíscas das quais ninguém se aproximava talvez porque, em sua semelhança a certo outro barqueiro, ele exalava a imensidão dos mangues, o entretecer dos charcos, a finalização das linhas no infinito ponto.

Preparei meu corpo para partir porque a mente, esta, esta mente, nunca parte, sempre ou foi ou já partiu ou sempre esvoaça ( pelo que me chamam de "viajante"). No rito de pagar o que devia de santa ambrosia ao dono dos néctares que me reerguiam do Nada, vi que ali estava meu futuro ou, talvez, o de muitos futuros se desenhava nele um pouco. Passei por ele tentando entrar no estabelecimento que ora eu abandonava, ora me decidia a ficar,talvez comovido à passagem de meus anos.

Ele tropeçou de leve, tentei ampará-lo. Num repelão, desfez-se de meu apoio e numa voz gutural, rouca, baixa e cavernosa, dirigiu-me uma injúria:

--Tira a mão de mim, Quasímodo.

Sentou-se onde antes eu estava. Deixou o tal báculo de lado. Observou-me de longe; e eu chegava de longe, e eu passava debaixo das flores amarelas das árvores curvadas pelos ares de Outubro. E percebia que aquilo não curava minhas dores. O gosto do tal líquido me voltou amargo. Quasímodo?

--Pois é.
--E daí?
--Daí, o quê?
--Nada.
--Moço!

O balconista, distraído em sua atenção, repete rápido um velho refrão.

--Manda!
--Faz um suco de Nada para mim.
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