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Cronicas-->O Milagre -- 10/01/2016 - 11:47 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O vestido de motivo floral tinha sido muito usado, pois estava puído e algo descorado. A senhorinha despontou como uma figura suave na entrada da estação de ónibus, olhando meio de soslaio, de lado, indicando com os gestos que procurava alguma coisa. Ela também usava um lenço na cabeça que cobria parcialmente os cabelos nevados; tinha porte, apesar de que certo tremor lhe traía a idade mais do que ela desejaria. Qual mulher deseja que se lhe desvelem a idade? A mulher é algo imponderável, talvez um ser atemporal, sua feminilidade nos poros, indelével. A senhorinha não se dava por vencida, isso se via em seu rosto marcado de vincos mas com olhos altivos.

--Moço, dá para o senhor me ajudar?
--No que eu puder!
--Então. Não saber ler não é vergonha...Acontece que comprei uma passagem para idoso com antecedência, só que tenho de ver onde confirmo minha presença no coletivo. Senão, perco a passagem.
--Pois não: Olhe, aqui diz que a senhora tem de ir à plataforma dois. Bem ali, a senhora pode esperar aqui sentada, pois eu vou pegar ónibus na três, que é do lado.

Ela ficou toda orgulhosa, porque agora sabia onde pegaria o ónibus. Pegou algo da bolsinha branca e pequena. Um batonzinho que passou nos lábios murchos.

--O senhor sabe, não é? Nunca tive tempo de estudar, não. Sempre trabalhei desde pequenina; lá no mato, ajudava a mãe com a criação de galinhas e porcos e ajudava o pai na semeadura. Quanto trigo não colhi, quanto pão não assei...Porém, não pude estudar, senão a gente não comia não senhor.
--A senhora mora em São Paulo?
--Moro, sim. Vim para cá depois que meu pai morreu, porque minha mãe Deus já levara antes. Viemos em quatro e cada um fez um pouco. De modo que um foi casando, o outro voltou para o fundão, mais um foi-se embora e sobrei eu; tive de me virar limpando casas dos outros, arrumando camas de crianças e cozinhando para muita madame. Nesse intervalo conheci meu marido e tive dois pequenos, uma filha que hoje está distante e um filho que vou visitar...
--Ele mora longe?
--Ele mora não, seu moço. Está é preso por tráfico. Foi cair na malha da vida fácil, olha aí no que deu.
--A senhora vai visita-lo lá?
--No presídio. Ninguém visita meu filho, só eu e Deus.

O olhar dela boiou um pouco, sem mágoa mas profundo, como se um poço se abrisse entre ela e seu passado e ela pudesse ver num relance suas duras lidas.

--...Mas, e seu marido?
--Se enrabichou por uma vadia, foi-se embora e nunca mais o vi.
--E sua filha?
--Casou e ficou importante. Não admite que eu me meta com um traficante, meu filho. Não quer saber mais de nós, não.
--E a senhora vai ficar em casa de parentes?
--Vou é nada! Vou dormir na rodoviária, meu filho. Durmo o final de semana, acordo segunda cedinho e vou protestar no presídio, seja com quem for...
--Por quê?
--Porque, meu filho, ele tem AIDS e Hepatite. Pegou esse trem na vida fácil. Agora, cadê o Coquetel? Há vinte dias não toma nada; quero saber de onde veio a ordem para parar o remédio. Pode ser tudo, meu filho, mas é gente e tem de se tratar. Não arredo pé, não.

Engraçado como uma pessoa que você mal conhece e se agiganta, assim como um monumento que se vê de longe e se aproxima. A visão da pequenez de nosso dia a dia é espantosa frente a uma senhora idosa, mãe desvelada, primorosamente vestida e cujo plano é dormir num banco de rodoviária para lutar por um filho quase perdido, que ela não abandona. Engraçado que tem tanta gente que gostaria de contar suas histórias e mal se veem por aí andando, somem no gigante destino do Mundo. Histórias de drama escondidas dentro de puídas bolsas, vincos escondendo duras decepções e amargas lembranças.

--Quantos anos a senhora tem?
--Setenta e dois, nem mais, nem menos.

O ónibus dela está encostando. O meu nem apontou ainda. Eu a sigo até a porta do dela e dou-lhe um abraço. Poderia ser minha mãe, podia ser eu o filho dela, mas não, lá sobe a figurinha dura, de lenço que avoa, lá vai a Mãe Máxima, todas elas reunidas em uma só, lutar por um vão filho que se não lhe trouxe orgulho, pelo menos lhe traz a lembrança, e a esperança. Esse é seu segredo.

Ela se volta e dá um adeus.
Nunca mais a encontrei por aqui. Talvez tenha dormido na praça, talvez almas caridosas a tenham recolhido a um lar, talvez ela tenha sido levada ao presídio por nobres pessoas; talvez aguarde reconhecimento num frio hospital. Talvez. Eu de minha parte, mandei meu ónibus às favas. E fui à casa de minha velhinha.
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