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Cronicas-->Verão -- 05/02/2016 - 18:54 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Respeito. A voz alta e grave inspira respeito. O alarido dos pássaros se aquieta. Olhando para o alto, ele sabe ler os sinais de um destempero, aprendeu a cuidar nas formas mutantes o despejo próximo de seu conteúdo. O tempo lhe trouxe experiência e sabedoria: ele sabe que o solo espiona, ávido, esperando a união que vai chegar. Com seus olhos cansados ele abarca o horizonte, vê galhos em convulsos movimentos, leves no princípio do vento, enquanto as folhas se carregam dos lampejos mais próximos. Os cães ladram medrosos, o fiel companheiro se esconde num arbusto.

--Eô, Lumpa, eô. Se aquiete que ela é brava, mas, como toda mulher, chega de manso e vai se apossando. A terra agradece...

Lumpa está encolhido com os estampidos e com a voz grave que retumba no fundo dos grotões. Galhos antes retorcidos voam depressa e folhas intumescidas agora formam redemoinhos de anjos disformes moídos pela fúria que se aproxima. Os olhos de cor escura e com o halo cinza da velhice que se aproxima contemplam o espetáculo das plantas que pagam seu tributo de estarem livres da inteligência que faz Lumpa se esconder e que silencia os ninhos, as casas dos homens e os pássaros do bosque próximo. Um estalo muito próximo faz o cachorro ganir e sumir num buraco.

--Calma que essa é mulher das boas. Rumorosa, marrenta, vem que vem com tudo. Está ouvindo a terra assoviar? A terra canta porque hoje tem um casamento das formas todas: O vento que agita os ramos, a água que escoa das lagoas de cima, o fogo que estraleja nos galhos e a Terra que precisa de alimento. Sempre foi assim, e é, e será. Não tem um dia que eu não deixe de me lembrar disso, companheiro. Essa vida já me levou é tudo, mas tenho aqui minhas mãos que plantam, minhas ferramentas que sangram e cultivam o solo, minha casinha que apesar de pobre tem sustança e minha vida que me faz deslumbrar todo dia que nasce.

Lumpa bem que tenta sorrir e concordar; no entanto, sabem vocês que os cães não sorriem e o cachorro, enfiando o rabo entre as patas, entra pela porta do abrigo que lhe serve de casa. Tudo está eletrizado, os ramos das árvores deixam escapar um clarão, feito nas tempestades em alto-mar que tanto assusta os marinheiros. Os fogos de Santelmo são falsos fantasmas, pensa ele, enquanto recolhe as poucas roupas que pôs para secar nos dias quentes que têm havido por ali. Se ele sente falta? Sente falta, porque dorme sozinho e não foi sempre assim: Sua companheira de há muitos anos, depois que os filhos vararam o portão e se perderam no mundo enorme, essa lhe foi fiel até que Deus a chamou de volta. Eles ficaram juntos muitos anos, tantos que ele nem se lembrava de ser tão sozinho. Era como se uma parte dele houvesse sido arrancada; como não sabia escrever, não teve como dar a notícia aos seus e ele a enterrou ali mesmo, perto da grande árvore que vez em quando produzia boas mangas. Havia lá uma placa com um retrato dela, o único que havia em suas coisas. O olhar sisudo dela lhe trazia boas recordações de outros verões e outras eras. Desde então, achou Lumpa perdido no matagal, esfomeado e triste, ainda jovem. Já agora, o cão já se avizinhava, como ele, do grande sono reparador.

--Se avexe não, meu cão amigo: Como as mulheres, a chuva vem e arranca tudo, mas depois vêm os filhos dela, que são as flores e mais depois ainda, vêm os frutos e a passarada semeando mais longe os tomateiros, as frutíferas, o limoeiro, o capinzal.... Vai o matagal seco esverdear e os filhotes habitarão o bosque. Pode acreditar, palavra, menino.

O chão tremia com a trovoada intensa, gotas enormes estalavam em seu telhado antigo e sem forro. Dependendo da força, vez em sempre tinha uma goteirinha e ele aproveitava e enchia os vasilhames de água de bênção, como ele a chamava. Ele, então, pegava assim o cigarrinho que enrolava com esmero no canto da porta, sentado na cadeira que tinha outra igual esperando na mesa. Era a cadeira dela que ele sempre mantinha ali, bem limpa e encerada. Como poucos, ele sabia da efemeridade da vida, de como tudo passa sob igual mandamento e que é verdade que todos nós um dia sentaremos na vazia cadeira. Um raio caiu bem perto, chegou a fazer cheiro de queimado no fundo de seu quintal, talvez uma chama houvesse surgido. Ele contemplava a brasa de seu cigarro, puxando fundo de dar peso no peito para depois tossir, pigarrear e comentar com o cão, mais até do que a si mesmo:

--É, meu camarada; sorte temos nós que temos um telhado e ainda estamos aqui: Meus filhos, onde se meteram que nunca mais voltaram? Decerto todos são estudados, vencedores na vida. Mas nunca que souberam que ela se foi assim, como um passarinho e agora quando vierem, um dia, vão falar o quê?

O cão dorme em seu canto e o velho pita seu cigarro, enquanto lá fora se avoluma a tempestade; ele ouve os gorgolejos da água caindo nas árvores, o troar dos raios que se sucedem um ao outro, ele pode ouvir o rugido do riacho que passa perto de sua casa, de onde ele tira o que precisa e onde pesca bons peixes. A cachoeira enche a terra de gemidos, a terra se remexe e chega a tremer de uma dor que vai mais que lancinante, que é a dor do amor que ela sente ao ser umedecida e fecundada pelas enxurradas e pelos borbotões que intumescem do céu cinza-profundo.

Um clarão mais prolongado o faz ver mais além e mais até do que pensa ver, pois que os olhos pregam peças, algumas peças que de tão engraçadas, o fazem sorrir: Aqui ele vê um de seus filhos fugitivos, brincando no balanço à beira do rio; ali ele vê a novilha desgarrada que veio comer em seu quintal e ficou sendo sua, já há algum tempo, lá ele relanceia a paixão de sua juventude que agora fita o vazio da cadeira caprichosa; não é por acaso que suas pálpebras tentam fechar e ele resiste, o matraquear da chuva que cai no telhado, as gotas que enchem vasilhames, o sol que se insinua entre nuvens revoltas...O sol que se intromete prolongando as sombras das árvores mais altas, os clarões da estrela que vai como o maior dos mandamentos secando aos poucos o rito da tempestade, aquecendo a ramaria, esfumaçando de vapor os campos, enchendo de neblina a superfície do rio que se espelha pouco a pouco, cheio de si e de peixes profundos... O sol que aquece a atmosfera que depois da chuva se torna pesado, úmido...

O Verão, o sol, a chuva, o firmamento.
Cai a gota de suor da testa do velho, bem na sua mão que tem o cigarro.

--Diacho. Molhou a ponta. Ademais, é hora de rezar.

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